– O Tio Ambrósio continua a ler! Parece que não se cansa, e até chego a pensar que algumas páginas são lidas e relidas várias vezes.
– Vem com Deus, Carlos! Nisso não te enganas, porque há leituras que são para se repetirem quantas vezes for necessário. É o caso da Palavra de Deus contida na Sagrada Escritura. A gente lê uma vez, lê duas vezes, lê vinte vezes e encontra sempre coisas novas. A Palavra de Deus é uma permanente novidade. Nunca conseguiremos esgotar o seu conteúdo nem abranger de modo satisfatório todo o seu sentido…
– Disso também já vou tendo alguma experiência, Tio Ambrósio! Desde que as lições da nossa catequese de adultos nos vão remetendo para a Bíblia, eu leio várias vezes a mesma passagem e encontro sempre algum aspecto novo que sempre tinha escapado à minha compreensão. Mas já eu também não é de admirar, pois os meus estudos ficaram pela primária e não me considero nenhum menino-prodígio. Agora vou tentando tirar alguns momentos para a leitura, mas houve muitos anos em que me limitava a ler as páginas do “Amigo do Povo”, e mesmo assim, algumas semanas ficava-me pela adivinha e pela charada em frase. E também lia sempre as leituras próprias do domingo, porque sempre achei que isso era necessário para uma melhor compreensão do sentido da Palavra que ia ser proclamada. Umas vezes bem, e outras menos bem! Porque nisto da Palavra de Deus, como diz o nosso prior, Padre Feliciano, não basta um homem saber ler para a proclamar como deve ser. Há pessoas que têm o dom de se fazer entender, ao passo que outras, por mais que se esforcem, ninguém consegue compreender o que dizem…
– É verdade que alguns são naturalmente mais dotados do que outros, mas, com trabalho e treino persistente, todos conseguem chegar onde desejam.
– Há bons exemplos disso na história. Não há, Tio Ambrósio?
– O mais conhecido é o do orador grego Demóstenes que, segundo se conta, era bastante gago. E um dia, no tribunal, ouviu um belo discurso do advogado Calistrato que, com a sua retórica esmerada, conseguiu vencer um caso que todos achavam perdido. E a, partir desse dia, o grande desejo do jovem Demóstenes era o de se tornar um verdadeiro orador. Conta a história, ou a lenda (que, neste caso se confundem) que, aprendendo a ler, o rapaz se pôs a decorar os discursos dos mais célebres oradores gregos, indo para a praia, correndo contra o vento e colocando pequenas pedras na boca para corrigir o seu defeito de natural gaguez. E conseguiu assim tornar-se num dos mais considerados oradores da Grécia Antiga.
– Eu não teria força de vontade para me dar a uma transformação dessas, Tio Ambrósio! Mas admiro alguns elementos da nossa comunidade paroquial que, quando entraram no grupo dos leitores, a princípio mal se entendia o que diziam, e hoje estão transformados em verdadeiros mestres do anúncio da Palavra. Para não irmos mais longe, repare no modo como lê a minha cunhada Ermelinda. Só tem a quarta classe como eu e, se alguém a ouvir ler na missa, julga que está na presença de uma verdadeira doutora. E, também neste caso, o segredo está na persistência. Diz-me o Acácio que, quando é a vez dela de fazer uma das leituras, todos os dias da semana anterior ela pega no missal e, mais que uma vez por dia, lê o texto dos profetas ou da carta de S. Paulo que corresponde à liturgia. E o Acácio tem que prestar a sua ajuda, porque ela lhe pede para escutar e, se encontrar algum defeito, lhe dizer como lhe parece melhor. Depois, à quinta-feira à noite, reúne-se com os outros leitores e todos procuram retocar o modo de ler.
– E esse esforço tem surtido os seus efeitos. Hoje, na igreja do Cabeço, temos o gosto de escutar com atenção as leituras proclamadas, porque se vê que todos os que são chamados a esse serviço, se preparam como deve ser. E até os mais novos parecem estar no bom caminho. Quando começam, nem olham para a assembleia, e despacham o texto que é um ver se te avias. Mas depois, quando o Liberato lhes começa a polir os defeitos, acabam por se concentrar e adquirir a voz pausada que estas circunstâncias requerem.
– Alguns também adoptam um ritmo demasiado lento, Tio Ambrósio! Cá no meu entender não deve ser nem tanto ao mar nem tanto à terra…
– Tens razão, Carlos! Tudo se quer na sua justa medida. Mas acontece que as pessoas têm nervos, umas com eles mais à flor da pele do que outras. E depois nem todos estão para fazer o esforço de Demóstenes…
– E uma coisa é a gente ler em público, outra é ler em casa, sem ninguém à sua volta, como o Tio Ambrósio agora estava a fazer. Eu nem lhe pergunto qual era a matéria da sua leitura…
– Mas podes saber, Carlos! Estava aqui a reler as intervenções que o nosso Papa Francisco fez em Fátima, porque se trata de uma comida muito forte, que precisa de ser mastigada muito devagar para fazer o efeito pretendido. O Santo Padre não nos cansou com longos discursos, mas a mensagem que nos deixou é curta e incisiva, focando os pontos que lhe são mais caros, como a misericórdia, a alegria de se ser cristão e de se viver de acordo com o Evangelho…
– E não esqueceu que a mensagem deve chegar também às periferias. A isso estive eu atento lá em Fátima, pois foram várias as vezes em que o Papa Francisco referiu esse tema, que é um dos mais característicos da sua mensagem. Em Fátima ele suplicou a esperança e a paz…
– Era mesmo isso que eu estava a reler. O Papa disse textualmente que a sua súplica era em favor de “todos os meus irmãos no Baptismo e em humanidade, de modo especial para os doentes e pessoas com deficiência, os presos e desempregados, os pobres e abandonados”.
– Os que vivem nas periferias sociais! O Tio Ambrósio está a dar-me a ideia, e eu prometo que também irei reler as palavras que o Papa Francisco nos trouxe, certamente para nós meditarmos.
– Fazes muito bem, Carlos! Verás que há aspectos a que não tinhas prestado a devida atenção…
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