28/05/2017

À SOMBRA DO CASTANHEIRO (28-05-2017)

– O Tio Ambrósio continua a ler! Parece que não se cansa, e até chego a pensar que algumas páginas são lidas e relidas várias vezes.
– Vem com Deus, Carlos! Nisso não te enganas, porque há leituras que são para se repetirem quantas vezes for necessário. É o caso da Palavra de Deus contida na Sagrada Escritura. A gente lê uma vez, lê duas vezes, lê vinte vezes e encontra sempre coisas novas. A Palavra de Deus é uma permanente novidade. Nunca conseguiremos esgotar o seu conteúdo nem abranger de modo satisfatório todo o seu sentido…
– Disso também já vou tendo alguma experiência, Tio Ambrósio! Desde que as lições da nossa catequese de adultos nos vão remetendo para a Bíblia, eu leio várias vezes a mesma passagem e encontro sempre algum aspecto novo que sempre tinha escapado à minha compreensão. Mas já eu também não é de admirar, pois os meus estudos ficaram pela primária e não me considero nenhum menino-prodígio. Agora vou tentando tirar alguns momentos para a leitura, mas houve muitos anos em que me limitava a ler as páginas do “Amigo do Povo”, e mesmo assim, algumas semanas ficava-me pela adivinha e pela charada em frase. E também lia sempre as leituras próprias do domingo, porque sempre achei que isso era necessário para uma melhor compreensão do sentido da Palavra que ia ser proclamada. Umas vezes bem, e outras menos bem! Porque nisto da Palavra de Deus, como diz o nosso prior, Padre Feliciano, não basta um homem saber ler para a proclamar como deve ser. Há pessoas que têm o dom de se fazer entender, ao passo que outras, por mais que se esforcem, ninguém consegue compreender o que dizem…
– É verdade que alguns são naturalmente mais dotados do que outros, mas, com trabalho e treino persistente, todos conseguem chegar onde desejam.
– Há bons exemplos disso na história. Não há, Tio Ambrósio?
– O mais conhecido é o do orador grego Demóstenes que, segundo se conta, era bastante gago. E um dia, no tribunal, ouviu um belo discurso do advogado Calistrato que, com a sua retórica esmerada, conseguiu vencer um caso que todos achavam perdido. E a, partir desse dia, o grande desejo do jovem Demóstenes era o de se tornar um verdadeiro orador. Conta a história, ou a lenda (que, neste caso se confundem) que, aprendendo a ler, o rapaz se pôs a decorar os discursos dos mais célebres oradores gregos, indo para a praia, correndo contra o vento e colocando pequenas pedras na boca para corrigir o seu defeito de natural gaguez. E conseguiu assim tornar-se num dos mais considerados oradores da Grécia Antiga.
– Eu não teria força de vontade para me dar a uma transformação dessas, Tio Ambrósio! Mas admiro alguns elementos da nossa comunidade paroquial que, quando entraram no grupo dos leitores, a princípio mal se entendia o que diziam, e hoje estão transformados em verdadeiros mestres do anúncio da Palavra. Para não irmos mais longe, repare no modo como lê a minha cunhada Ermelinda. Só tem a quarta classe como eu e, se alguém a ouvir ler na missa, julga que está na presença de uma verdadeira doutora. E, também neste caso, o segredo está na persistência. Diz-me o Acácio que, quando é a vez dela de fazer uma das leituras, todos os dias da semana anterior ela pega no missal e, mais que uma vez por dia, lê o texto dos profetas ou da carta de S. Paulo que corresponde à liturgia. E o Acácio tem que prestar a sua ajuda, porque ela lhe pede para escutar e, se encontrar algum defeito, lhe dizer como lhe parece melhor. Depois, à quinta-feira à noite, reúne-se com os outros leitores e todos procuram retocar o modo de ler.
– E esse esforço tem surtido os seus efeitos. Hoje, na igreja do Cabeço, temos o gosto de escutar com atenção as leituras proclamadas, porque se vê que todos os que são chamados a esse serviço, se preparam como deve ser. E até os mais novos parecem estar no bom caminho. Quando começam, nem olham para a assembleia, e despacham o texto que é um ver se te avias. Mas depois, quando o Liberato lhes começa a polir os defeitos, acabam por se concentrar e adquirir a voz pausada que estas circunstâncias requerem.
– Alguns também adoptam um ritmo demasiado lento, Tio Ambrósio! Cá no meu entender não deve ser nem tanto ao mar nem tanto à terra…
– Tens razão, Carlos! Tudo se quer na sua justa medida. Mas acontece que as pessoas têm nervos, umas com eles mais à flor da pele do que outras. E depois nem todos estão para fazer o esforço de Demóstenes…
– E uma coisa é a gente ler em público, outra é ler em casa, sem ninguém à sua volta, como o Tio Ambrósio agora estava a fazer. Eu nem lhe pergunto qual era a matéria da sua leitura…
– Mas podes saber, Carlos! Estava aqui a reler as intervenções que o nosso Papa Francisco fez em Fátima, porque se trata de uma comida muito forte, que precisa de ser mastigada muito devagar para fazer o efeito pretendido. O Santo Padre não nos cansou com longos discursos, mas a mensagem que nos deixou é curta e incisiva, focando os pontos que lhe são mais caros, como a misericórdia, a alegria de se ser cristão e de se viver de acordo com o Evangelho…
– E não esqueceu que a mensagem deve chegar também às periferias. A isso estive eu atento lá em Fátima, pois foram várias as vezes em que o Papa Francisco referiu esse tema, que é um dos mais característicos da sua mensagem. Em Fátima ele suplicou a esperança e a paz…
– Era mesmo isso que eu estava a reler. O Papa disse textualmente que a sua súplica era em favor de “todos os meus irmãos no Baptismo e em humanidade, de modo especial para os doentes e pessoas com deficiência, os presos e desempregados, os pobres e abandonados”.
– Os que vivem nas periferias sociais! O Tio Ambrósio está a dar-me a ideia, e eu prometo que também irei reler as palavras que o Papa Francisco nos trouxe, certamente para nós meditarmos.
– Fazes muito bem, Carlos! Verás que há aspectos a que não tinhas prestado a devida atenção…

25/05/2017

NA MINHA RUA

“Na minha rua toda a gente lê o Amigo do Povo!” A expressão é da senhora Estela Carvalho, nossa colectora em Viana do Castelo. Ao telefone, diz-me ter 92 anos. Confesso que fiquei espantado com a sua vivacidade e ternura. Há mais de 20 anos que distribui o jornal porta à porta. “Enquanto eu puder serei colaboradora da Liga da Boa Imprensa”. Coisa que já não ouvia há muito tempo. Tempos áureos em que os cristãos defendiam aquilo que era seu, em nome da verdade e à luz da doutrina cristã.
 Hoje, infelizmente, não sabemos onde paira a verdade. Não quero aqui culpar os jornalistas, mas os difusores de boatos que proliferam a toda à hora nas redes sociais (na Internet). Tudo quanto é publicado no Facebook não é questionado e, mais grave do que isso, para além de ser partilhado pelos seus membros, ainda é difundido nos jornais e telejornais. Estou a lembrar-me, por exemplo, da notícia que apareceu sobre 9 freiras que engravidaram de refugiados… Um boato como tantos outros que andam por aí.
 Ao recordar-me das palavras da Dona Estela Carvalho que apesar das “pancadas da vida” (e foram muitas) nunca devemos desistir de lutar pela Boa Imprensa, pela verdade e pelos nossos ideais.
Miguel Cotrim
(19-02-2017)

23/05/2017

À SOMBRA DO CASTANHEIRO (21-05-2017)

– Agora, que já passaram as emoções mais fortes, vais-me contar como decorreu a tua peregrinação a Fátima nos dias doze e treze de Maio! Como te sentes, depois desta experiência, Carlos?
– Com a alma renovada, Tio Ambrósio! O que se passa com cada um naquele lugar não é fácil de descrever, porque a vivência espiritual toca a cada um de sua maneira. Há os que se ajoelham e erguem as mãos; os que balbuciam orações; os que batem com a mão no peito, pedindo perdão e misericórdia; os que cantam hinos de louvor; e há os que, diante da imagem da Virgem do Rosário, ficam com os olhos rasos de água, caindo-lhes as lágrimas pelo rusto, duas a duas, como que nascidas de uma fonte inesgotável…
– Até eu aqui, em frente do televisor, passei por muitos desses momentos que me comoveram até ao fundo da alma! Sou assim! Há alturas em que não consigo deixar de levantar as mãos em jeito de prece, e outras em que me comovo até às lágrimas. E estes sentimentos vão sendo cada vez mais fortes em mim com o passar dos anos.
– Também eu senti todas essas emoções, Tio Ambrósio! Procuro não as exteriorizar muito, mas cá por dentro vivo intensamente cada momento. Tocou-me sobremaneira o silêncio, Tio Ambrósio! Quando o Santo Padre entrou no recinto da Cova da Iria todos os presentes lhe deram vivas e bateram palmas. Mas depois, quando o Papa Francisco entrou na capelinha das aparições, que é o verdadeiro coração do Santuário, e se colocou em frente da imagem de Nossa Senhora, olhando-a fixamente, e não balbuciando qualquer palavra por largos minutos, o seu silêncio foi contagiante. Aquela multidão de centenas de milhar de pessoas assumiu uma atitude de profundo recolhimento e eu tive a sensação de ouvir o próprio silêncio dentro do peito das pessoas. A Joana e os pequenos, que estavam junto de mim, espontaneamente deram-me as mãos, e eu sou testemunha da concentração da mais pequena, que, sendo habitualmente tão irrequieta, ali ficou de olhos fixos na capelinha, quase não pestanejando nem mexendo os lábios. Era tão profundo o silêncio que a sua mão pequena, na minha já calejada pelo trabalho e pelos anos, quase nem deixava aperceber o batimento do coração…
– Temos muitas semelhanças, Carlos! Claro que não é a mesma coisa participar numa peregrinação ao vivo, sentindo as emoções no próprio lugar onde decorrem os acontecimentos, do que assistir através da televisão, que tem um ritmo próprio para manter os espectadores atentos ao que se passa. Mas foi-me grato registar que o locutor de serviço do canal que estava a seguir se deixou, também ele, contagiar pelo silêncio, de tal modo que eu pude fechar os olhos e peregrinar espiritualmente até junto de vós, participando da vossa vivência no próprio lugar onde o Papa Francisco dialogava, em silêncio profundo, com a Mãe de Jesus.
– Não é assim muito fácil de entender que o diálogo possa acontecer através do silêncio, no mais íntimo de cada um…
– É preciso fazer a experiência do silêncio para se acreditar nesse poderoso meio de comunicação, meu caro Carlos! Toda a gente diz que “a falar é que a gente se entende”. E isso é verdade. Mas nem todos descobriram ainda que se pode falar com os lábios, se pode falar com o olhar e se pode falar com o coração. O Santo Padre, olhando com ternura a imagem de Maria, sintonizou o seu olhar e o seu coração com o olhar e o coração da Mãe. Todos nos apercebemos que houve um diálogo de sentimentos, uma declaração de amor por parte de um, e a resposta da ternura maternal por parte de Maria…
– Eu senti uma coisa semelhante, Tio Ambrósio! E no dia seguinte, logo pela manhã, a Joana, que nisto como em tudo é uma verdadeira mãe de família, convidou-nos a aproximarmo-nos o mais possível da capelina e, de novo com as mãos entrelaçadas, termos uma conversa familiar com Nossa Senhora, todos em silêncio, mas com os nossos corações sintonizados com o dela! E eu ouvi distintamente no meu interior a voz da Virgem Maria a segredar-me que lhe era muito agradável que estivéssemos ali em família, quase que unidos num só coração e numa só alma. E a Joana, já no regresso, segredou-me que se passou com ela o mesmo que se passara comigo. E até a nossa filha mais nova teve o atrevimento de me perguntar o que é que Nossa Senhora me tinha dito quando estivemos de mãos dadas em silêncio orante diante da Sua imagem.
– E tu, que lhe respondeste?
– Apenas a olhei e lhe sorri! E ela entendeu que a Mãe de Jesus me tinha dito a mim precisamente o que lhe havia dito a ela. E depois mudou de página, porque estava a aproximar-se o momento mais esperado por ela e pelas outras crianças.
– Por todos nós que, apesar dos anos, continuamos a ser meninos e a sonhar que estamos dormindo seguros e tranquilos ao colo da nossa Mãe…
– Eu estou a referir-me ao momento da canonização do Francisco e da Jacinta…
– E eu também, Carlos! Vivi esse momento como se agora tivesse a idade do Francisco…
– De São Francisco Marto e de Santa Jacinta Marto…
– Que são tão nossos que nos apetece continuar a chamar-lhes apenas Francisco e Jacinta…
– Foi o que me disse a minha pequena ao afirmar-me, que sabia que ela (e referia-se à Jacinta) estava agora inscrita no livro de registo dos santos. Mas que, como sempre fizera, iria continuar a tratá-la por tu, porque era amiga dela pelo menos desde que foi para a catequese, e que até rezavam ambas as mesmas orações…
– E venham dizer-nos que as crianças não atingem a profundidade das coisas!
– Ou que não têm entendimento suficiente do Amor de Deus para poderem ser elevadas à honra dos altares.
– Muito pelo contrário, Carlos! Eu penso que as crianças estão muito mais próximas da santidade original. E não esqueço que Jesus declarou, alto e bom som, que quem não for como elas não entrará no reino dos céus…

16/05/2017

Estar em Fátima com o peregrino da paz

Foi um triplo acontecimento feliz que ocorreu no passado 13 de Maio em Fátima: centenário das aparições; visita do Papa Francisco; e canonização dos pastorinhos Francisco e Jacinta, a primeira a ocorrer em Portugal.
Estar junto do Papa é uma sensação difícil de descrever. Não tem a ver com o facto de ser uma pessoa muito famosa: posso garantir-vos que é uma sensação completamente diferente da de estar com alguém famoso; porque é um sentimento que brota da fé, a fé de que aquele homem é o Vigário de Cristo na terra! Os Actos dos Apóstolos descrevem milagres feitos pelos apóstolos, em especial São Pedro, muito semelhantes aos milagres de Jesus. Esses milagres ali descritos são o sinal de que a acção salvadora de Jesus continua na Sua Igreja: Jesus subiu ao céu, mas continua presente e actuante, de um modo especial nos Seus discípulos, a começar pelos apóstolos e, entre eles, a começar por Pedro, o primeiro dos apóstolos. Por isso, São Pedro fazia milagres semelhantes aos de Jesus e os doentes aproximavam-se dele e queriam tocá-lo, da mesma forma que se aproximavam e queriam tocar em Jesus. Ora, junto do Santo Padre, que é sucessor do apóstolo Pedro, a sensação é essa, de uma grande proximidade a Jesus, por ele representado de uma maneira tão especial. Foi uma alegria inefável, não ruidosa, mas profunda.
Pe. Orlando Henriques

14/05/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (14-05-2017)

– Estamos mesmo de partida, Tio Ambrósio! Mas como, no domingo devemos vir cansados que baste, pois a vigília vai ser longa e exigente, eu resolvi dar ainda aqui um salto para lhe dar um abraço que compense a minha possível ausência de domingo. O Tio Ambrósio não leva a mal, pois não?
– Levo agora, Carlos! A tua companhia é-me sempre grata, seja a que horas for, e todos os motivos são bons para vires dar dois dedos de conversa com este teu velho amigo. É verdade que eu passo uma boa parte do meu tempo por aqui sozinho, meditando na vida e falando comigo mesmo, e não tenho grande dificuldade em viver um pouco afastado da multidão. Mas não sou propriamente um anacoreta daqueles do século quarto que procuravam a solidão do deserto como forma de se aperfeiçoarem na vida espiritual…
– Era aquilo a que eles chamavam de “fuga do mundo”! Não era, Tio Ambrósio?
– Nem todos iam para o deserto pelos mesmos motivos, Carlos! Alguns refugiavam-se nos montes e nas grutas para fugirem à justiça, ou porque tinham cometido algum crime de sangue, ou porque deviam avultadas contas de dinheiro…
– Como os tempos mudaram, Tio Ambrósio! Hoje em dia, muitos dos que se abotoaram com somas astronómicas, deixando mesmo as instituições bancárias na falência, não se refugiam em nenhuma montanha inacessível, com medo ou com vergonha dos crimes que cometeram. Muito pelo contrário, instalam-se em mansões de luxo, e continuam a fazer uma vida faustosa, como se não houvesse nenhum motivo grave a perturbar-lhes a consciência!
– A ti está a puxar-te a língua para a crítica social, Carlos! Tem calma, rapaz! Afinal tu vais fazer uma peregrinação a Fátima, e é bom que aproveites a ocasião mais para reflectires sobre a necessidade que este mundo tem de perdão, do que os malandros têm de condenação. Não te esqueças daquela conversa que Jesus teve com Nicodemos, em que lhe afirmou que “Deus não enviou o Seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para este ser salvo por seu intermédio”.
– Eu sei, Tio Ambrósio! Mas tenho muita dificuldade em aceitar algumas verdades evangélicas. Será que pode haver perdão sem arrependimento?
– É uma pergunta honesta e inteligente, Carlos! Mas eu hoje estou mais inclinado em associar o perdão à misericórdia…
– E se acontecerem as três coisas ao mesmo tempo. Ou seja, o perdão ser fruto, por um lado do arrependimento, e, por outro, da misericórdia. Teríamos assim um perdão mais perfeito ou, pelo menos, mais compreensível.
– Entendo a tua posição, Carlos! Só que, ao contrário do arrependimento, que nem sempre existe, a misericórdia de Deus é infinita. De tal modo que S. Paulo chega a afirmar que “onde abundou o pecado, superabundou a graça” misericordiosa do Pai que perdoa sempre.
– Eu penso que nós havemos de um dia ter uma conversa mais a preceito sobre este assunto, pedindo mesmo a opinião ao Liberato, ao senhor Padre Feliciano, ou mesmo a um senhor Padre de Coimbra que é especialista em teologia moral. Que lhe parece?
– Havemos de aprazar o encontro, Carlos! Mas eu, por mais razões que me dêem, não sou capaz de pôr em dúvida, um momento sequer, a gratuidade e a infinitude da misericórdia de Deus para connosco.
– O Tio Ambrósio, com essa sua tendência, para a solidão, vai ter tempo para fazer uma reflexão profunda sobre esse assunto. E até aproveito para lhe pedir que, depois, nos vá fazer uma sessão da nossa catequese de adultos sobre esse tema tão importante na vida do nosso tempo…
– O perdão, o arrependimento, a penitência e assuntos afins não são um exclusivo dos dias de hoje, Carlos! Desde que o homem se deixou cair na tentação do orgulho, sempre houve necessidade de recorrer à misericórdia divina…
– E sempre houve necessidade de arrependimento para se obter essa misericórdia. Eu penso, com o Liberato, que arrependimento e misericórdia andam sempre juntos…
– Não sei se o Liberato faria uma afirmação dessas sem se sentir obrigado a dar algumas explicações, porque a dimensão do arrependimento e da misericórdia se apresentam com dimensões incomensuravelmente diferentes. O arrependimento é um sentimento humano e, por isso, muito limitado. Ao passo que a misericórdia é um atributo de Deus e, por isso, nunca se esgota, porque é impossível imaginar que se esgote o Amor de Deus!
– O Tio Ambrósio está a levar o tema para além dos limites do meu pobre entendimento. Aceito que seja assim como vossemecê afirma, mas tenho que me resignar à minha pobreza intelectual. E penso que não é mal nenhum um cristão aceitar como verdade um princípio que não entende em toda a sua profundidade.
– Se entendêssemos todas coisas em profundidade não teríamos necessidade da fé, meu caro Carlos…
– Há quem fale da fé dos simples, Tio Ambrósio! Assim é a minha! Eu posso juntar-me àqueles discípulos que, depois de terem escutado, de olhos arregalados, um discurso do Mestre, lhe fizeram o pedido: “Senhor, aumenta a nossa fé”!
– E que respondeu Jesus a esse pedido?
– Parece-me que lhes disse que, se tivessem fé como um grão de mostarda, poderiam dizer a uma amoreira “arranca-te daqui e vai plantar-te no mar”… e ela havia de lhes obedecer! Obrigado por este bocadinho, Tio Ambrósio! Penso que, com esta nossa conversa, vou um pouco mais preparado para aceitar a fé simples e humilde da multidão de peregrinos que, nestes dias vai estar na Cova da Iria…
– Dos pequenos e humildes é que é o Reino dos Céus, Carlos. Por isso, se queres ser grande, faz-te pequeno como uma criança…
– Se calhar há verdades que as crianças entendem muito melhor que os adultos, Tio Ambrósio!
– Não duvides, Carlos! Vai lá com Deus, e observa bem o que se passa à tua volta. E não te esqueças que Jesus rezou assim: “Eu Te bendigo, ó Pai, porque escondeste estas verdades aos sábios e aos inteligentes, e as revelaste aos pequeninos …porque assim foi do Teu agrado”
– Vou pensar seriamente nisso, Tio Ambrósio!
– Adeus, Carlos! E não te esqueças do meu recado para a Mãe! Ela sabe o que é!

10/05/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (07-05-2017)

– O Tio Ambrósio não vai ficar zangado comigo! Mas eu sempre me resolvi a ir a Fátima nos dias 12 e 13 de Maio, porque a Joana não se calava, e com alguma razão…
– Com toda a razão, Carlos!
– Depois houve a feliz coincidência de haver uma desistência nos ocupantes do autocarro alugado pelo Liberato, que logo me veio comunicar a feliz novidade. E eu, que já andava com algum remorso em deixar ir a Joana sozinha com os pequenos, disse-lhe que contasse comigo. E lá vou! Tenho é muita pena de deixar o Tio Ambrósio sozinho, quando já tínhamos combinado ir ver todas as cerimónias a minha casa, na televisão nova, que quase parece uma sala de cinema…
– Fico muito feliz por ti, Carlos! E quanto a mim, não tem importância nenhuma, pois eu já estou habituado a passar longas jornadas sem ninguém à minha volta. Essa até é uma das melhores coisas que me acontecem quando eu quero fazer uma mais profunda meditação sobre a vida. E não penses que eu vou ficar sozinho! Nestas ocasiões, como quase em todas as outras, há sempre alguém que gosta da nossa presença, que agradece um pouco de calor humano…
– Temos aí alguns doentes acamados, Tio Ambrósio…
– Vês como tu até és capaz de adivinhar as minhas intenções? Na sexta à tarde saio daqui e vou com o meu passo até casa do Manuel Crispim, que tem andado atrapalhado da saúde. Disse-me o filho, que encontrei um dia destes, que ele, ultimamente, nem tem saído de casa, e pouco sai da cama. Logo pensei que tinha que pôr os pés ao caminho e fazer-lhe uma visita. Calha mesmo agora! E como o Crispim é um homem muito religioso e devoto de Nossa Senhora de Fátima, tenho a certeza que vai gostar que eu assista com ele às cerimónias através da televisão. E até vamos aproveitar para rezar os dois algumas orações, acompanhando os peregrinos…
– É um bonito gesto esse, Tio Ambrósio! E tenho a certeza que, em muitas aldeias de Portugal, não deixará de ser imitado, sobretudo pelos visitadores de doentes.
– Por isso, cada um no seu lugar! Se eu tivesse uns anitos a menos, seria dos primeiros a pôr os pés ao caminho até à Cova da Iria, que é um lugar onde sinto uma paz e uma tranquilidade que, no meu entender, só podem vir do céu. Mas como a idade não perdoa, fico-me por cá, visitando o Crispim ou mais algum acamado de que eu tenha conhecimento, e rezando com eles em sintonia com o Santo Padre e as centenas de cristãos que, nesses dias, vão encher por completo o recinto do Santuário. Sinto que, nestas circunstâncias, é aqui o meu lugar…
– E pode crer que eu fico um bocado dividido, Tio Ambrósio! Também gostaria de ficar consigo…
– Não, Carlos! O teu lugar é lá, acompanhando a tua família, porque Nossa Senhora dedica especial carinho maternal às famílias que sabem viver em comunhão de sentimentos e partilhando o dom da fé.
– Vou preparar-me o melhor que possa, Tio Ambrósio! Eu não sei como irei ser capaz de conter o entusiasmo dos pequenos, que já não falam de outra coisa há várias semanas. Então a mais nova anda delirante pelo facto de poder assistir à canonização da Jacinta, de quem ela é uma especial devota. E eu aproveito para lhe ir dizendo que os santos, e neste caso, os pastorinhos de Fátima, são exemplos que o Senhor coloca no nosso caminho para nós procurarmos imitar.
– E, certamente, imitam…
– A mais pequena imita, Tio Ambrósio! Se algum dia jantamos mais tarde, no final é ela que nos lembra que ainda não rezamos o terço. E logo a Joana, mesmo a lavar a louça, começa a nomear os mistérios, que ela sabe na ponta da língua…
– Graças a Deus que ainda temos crianças assim, Carlos! Hoje não é fácil transmitir aos mais novos o maravilhoso do mundo espiritual. Os mais novos perdem-se em jogos de computador…
– Também há jogos e filmes que despertam o coração dos jovens para a vida da piedade…
– É preciso saber aproveitá-los, Carlos! Quando tu eras pequeno, as imagens que vinham nos catecismos eram suficientes para despertar a tua curiosidade. Mas agora existem, felizmente, outros meios para prenderem a atenção das crianças e dos adolescentes. Eu não percebo muito disso, mas sei que há catequistas que aproveitam as novas tecnologias, incluindo os telemóveis e as redes sociais, para lançarem desafios de aprendizagem aos mais novos.
– Por vezes lamentamo-nos que as novas gerações perderam o interesse pelo sagrado e pelo divino e, se calhar, andamos enganados. O que é preciso é apresentar-lhes o mundo espiritual numa linguagem que eles entendam…
– Vai pensando nessas coisas enquanto, lá em Fátima, estiveres a ouvir a homilia do Papa Francisco, porque ele é muito sugestivo nas imagens que apresenta na sua pregação…
– Não irei perder uma palavra, Tio Ambrósio! E tenho a certeza que a minha filhota mais pequena, quando chegar cá, vai ser capaz de lhe repetir, quase palavra por palavra, a fórmula que o Santo Padre usar no acto de canonização dos pastorinhos!
– Poderei ler tudo isso nos jornais, Carlos! Eu verei todas as coisas na televisão, mas não dispenso a imprensa escrita. Impressa num jornal, a homilia do Papa Francisco tem outro peso, pelo menos para os velhotes da minha geração. Estando impressa, a gente pode guardá-la e, passado um dia ou dois, voltar a lê-la para lhe aprofundar o sentido. O mesmo se passa com outros textos importantes, como sejam os das leituras da Palavra de Deus em cada domingo. Quando a gente só ouve, facilmente pode esquecer! Mas, se tiver um missal, no dia seguinte, se lhe surgirem dúvidas, pode tirá-las com uma releitura dos textos. A mim, isso acontece-me vezes sem conta. Então com esta memória, já gasta pelos muitos anos, o que me vale é ter os livros à mão.
– Ainda um dia teremos ocasião de abordar melhor esse assunto…
– Não hão-de faltar oportunidades, Carlos! Agora vai lá com Deus, e não te esqueças de rezar uma Avé Maria por mim a Nossa Senhora de Fátima.
– Prometido é devido, Tio Ambrósio!