– Agora sim, Carlos! Depois deste opíparo almoço que a tua Joana nos ofereceu, tendo a grata companhia dos teus cunhados Acácio e Ermelinda, como estava prometido, podemos descansar um pouco à sombra deste secular castanheiro. Sabes que gostei muito das informações que eles nos deram sobre a sua longa e proveitosa viagem àqueles países que só há poucos anos conseguiram libertar-se do jugo soviético.
– E parece que o domínio estranho deixou marcas bastante profundas nestes povos subjugados a um regime que detestavam, mas que eram obrigados a aceitar…
– Isso aconteceu sempre com todas as ditaduras, Carlos! E o mais grave é que esta não nasceu no próprio país, mas foi imposta de fora, como aconteceu em tantos outros lugares que integraram esse vasto império onde, ao que parece, havia tudo menos liberdade.
– Felizmente que, no final do século vinte, esses povos conseguiram de novo a sua autonomia e reocupar o lugar que lhes cabia, por direito próprio, no concerto das nações. Cada um dos países voltou a ter o seu parlamento, eleito de modo livre por todos os cidadãos…
– Mas a ocupação deixou marcas, que ainda continuam visíveis. A Ermelinda virou-se mais para os aspectos folclóricos de cada região, mas o Acácio colheu algumas notas interessantes, nomeadamente sobre a actividade religiosa. Parece que, quanto mais para norte, onde era menor a influência do catolicismo, mais rapidamente se esqueceram os princípios da fé, pelo menos tendo em conta o que se pode observar através dos templos que agora continuam abertos, mas que serviram de armazéns e de estaleiros. Na sua maior parte, hoje não passam de pequenos museus. Por isso o Acácio faz bem em se perguntar a si próprio se, entre aqueles povos, a fé se perdeu…
– Não se terá perdido de todo. Mas é bem provável que tenha enfraquecido. O Tio Ambrósio vai incluir este tema nas suas leituras e depois, se vier a talho de foice, nos dará informações mais precisas sobre este assunto.
– Não prometo, Carlos! A vista já me começa a faltar e, além disso, não temos aqui à mão elementos que nos permitam fazer uma avaliação das transformações sociais e religiosas que aconteceram por via da ocupação de estados soberanos por parte de um regime ateu. Aquilo que eu te posso dizer, pelo que tenho observado, é que quanto mais profundas são as raízes religiosas de um povo, mais dificilmente é possível varrer o espírito de fé desse povo. Foi, por exemplo, o que me contou o Liberato que, há poucos anos visitou a Rússia, onde a ortodoxia faz parte da alma do próprio povo. Segundo ele observou, mal a repressão deixou entrar uma pequena aragem fresca de liberdade, os crentes voltaram a encher os templos e a manifestar a sua religiosidade popular, cantando hinos, participando nos ritos litúrgicos ou prestando veneração aos sagrados ícones de Jesus Cristo e de Sua Mãe, Maria Santíssima.
– Extraordinário! Não é, Tio Ambrósio?
– Deus não dorme, Carlos! Tenhamos confiança no cumprimento de tudo o que nos prometeu! Ele não abandona o Seu povo! É verdade que Deus não nos substitui no trabalho da evangelização, que é compromisso nosso. Pelo baptismo todos nós fomos constituídos missionários e testemunhas da presença de Deus no mundo. Antes de subir aos céus, Jesus reuniu os seus discípulos e deu-lhes a missão de irem por todo o mundo e anunciarem a Boa Nova a toda a criatura. O Senhor não lhes disse a eles, e não nos diz a nós, que somos os seus discípulos de hoje, para ficarmos a olhar para os céus, esperando que daí caia a solução para todos os problemas do homem. Ele empregou dois verbos no modo imperativo: Ide e Anunciai!
– Mas não é fácil um homem, por muito cristão que seja, deixar a sua casa, o seu conforto, a sua família e dispor-se a ir por aí fora, para o desconhecido…
– Não é fácil, não, Carlos! Não é agora e nunca o foi nos tempos passados! E, no entanto, Deus nunca deixou de suscitar no coração de muitos o desejo e a coragem de partirem. Se percorrermos os cinco continentes, de norte a sul e de leste a oeste, um pouco por todo o lado encontraremos sinais da presença de homens e mulheres de fibra, que entenderam à letra o texto do envio feito por Jesus aos seus discípulos. Muitos pagaram a audácia com as suas próprias vidas. Mas agora são recordados, às vezes como heróis sem nome, ao passo que os que ficaram em suas casas, agarrados ao arado do comodismo…onde está a sua memória?
– Olhe que eu ficava aqui a tarde inteira, de boca aberta, a ouvir o Tio Ambrósio que, mesmo deste assunto, sabe mais do que a maioria de nós. Mas vou ter que o deixar, porque prometi ao Liberato que passaria esta tarde pela sala de reuniões da Junta de Freguesia para ter com ele uma conversa. Penso que o Liberato convocou uma série de pessoas, não sei bem para quê!
– Cheira-me a assunto relacionado com as eleições autárquicas, que as temos aí à porta, e eu até estou admirado com o silêncio que se tem feito. Alguns anos passavam aí com umas carrinhas a pedirem o voto neste ou naquele candidato. Este ano estou a sentir isto tão parado que até nem me lembro que estamos a menos de um mês do acto eleitoral.
– As eleições passaram a ser uma rotina, Tio Ambrósio! De tantos em tantos anos lá temos que ir nós dizer de nossa justiça…
– E até me parece que alguns dos candidatos se profissionalizaram! Estiveram de fora, obrigados pela oportuna lei da restrição dos mandatos, mas, logo que podem, aí estão eles aptos para todo o serviço, ou melhor, dispostos a continuarem a dizer que pretendem servir o povo, quando, na maioria dos casos, o que pretendem é servir-se do povo…
– Deve haver de tudo, Tio Ambrósio! Mas o Liberato é um homem acima de qualquer suspeita.
– Eu não estou a falar do Liberato, meu caro Carlos! Falo de muitos outros que eu conheço de ginjeira! E tu também os conheces! Mas, vai lá, que se pode fazer tarde!
– Adeus, Tio Ambrósio! Se houver novidades, cá estarei para lhas contar!
– Vai com Deus, Carlos!
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