– Santas tardes, Tio Ambrósio!
– Vem com Deus, Carlos! Hoje não me vais fazer qualquer pergunta, nem comentar as sondagens em relação às eleições autárquicas.
– Não estou para aí virado, Tio Ambrósio!
– Eu também não, Carlos! Gosto de falar de política a sério, de um bom debate, com gente que saiba o que diz, e que fundamente as suas opiniões numa prática saudável do exercício de algum cargo público. Ora desta política de trazer por casa, longe dela, Carlos! Não é por acaso que Políticos com P maiúsculo aparecem muito poucos, e esses nem sempre conseguem o apoio popular. Por norma, o povo deixa-se levar com muita facilidade por alguns charlatães que sabem aproveitar-se da ingenuidade dos menos instruídos.
– Somos assim, Tio Ambrósio! Reagimos mais com o coração do que com a cabeça. E depois de sermos enganados vemos que já não há nada a fazer! Que nós, o povo português, até somos dotados de bons e nobres sentimentos, de altruísmo, de espírito de partilha e de amor ao próximo. E o incrível é que haja quem se aproveite disto para daí auferir dividendos…
– Estás a referir-te a algum caso em concreto, Carlos!
– Até estou, Tio Ambrósio! É verdade que eu não sou nenhum entendido destas coisas, mas vou ouvindo aqui e ali, vou lendo os jornais e ouvindo os telejornais e as notícias na Rádio Renascença e, como qualquer homem dotado de inteligência, vou tirando as minhas dúvidas e formando as minhas opiniões. Eu e os outros!
– Nesta matéria, o melhor é cada um falar por si, Carlos!
– Eu sei, Tio Ambrósio! Mas o certo é que, com uma palavra daqui, com um comentário dali, a pouco e pouco vai-se formando a opinião geral dos cidadãos a que alguns dão o pomposo nome de opinião pública…
– Não sei se os grandes mestres da comunicação têm essa noção de opinião pública…
– Mas, pelo menos, há a voz corrente, Tio Ambrósio! Por exemplo a propósito dos incêndios, é voz corrente que, na absoluta maioria dos casos se trata não de qualquer incidente, mas verdadeiramente de fogo posto. E, mais do que isso, arranjem-se as desculpas que se arranjarem, ninguém convence o povo que não existem interesses por detrás destas tragédias. O povo aponta o dedo àqueles que presume que retiram lucros destas fatalidades que nos atingem todos os anos. O Sanguessuga, por exemplo, está convencido e afirma-o à boca cheia que, se não fosse o lucro de alguns, não haveria metade dos incêndios em Portugal. Porque, como ele costuma dizer, isto está inscrito no calendário como as festas ou como os jogos de futebol. Quando ainda estamos em Janeiro já alguns começam a sonhar com a “época dos incêndios”, como se não fosse possível passarmos sem este martírio anual.
– É preciso prevenir, Carlos!
– Eu sei, Tio Ambrósio! Mas ninguém convence o povo de que, uma vez organizados esses meios de prevenção, eles possam não ser usados…
– Estás a insinuar que há quem aproveite os incêndios para encher os bolsos…
– Não sou eu, Tio Ambrósio! É o povo que pensa assim! Ainda ontem à tarde, na loja do Sanguessuga, quando deu a notícia na televisão sobre dois novos focos de incêndio que começaram a lavrar para os lados da Covilhã e na martirizada zona do pinhal, logo houve quem aventasse culpas a companhias e empresas cuja actividade lucrativa está ligada a este sector.
– Eu seria incapaz de imputar um crime tão grave a gente que é ou pelo menos se apresenta como honesta e acima de toda a suspeita…
– Eu pessoalmente também, Tio Ambrósio! Mas houve alguém lá do grupo que, dentro do mesmo assunto, perguntou o que foi feito do dinheiro que se juntou para socorrer as vítimas do incêndio de Pedrógão. Foram bastantes as instituições que se propuseram como colectoras dos contributos populares, e parece que nem todas prestaram as contas como devia ser. O dinheiro oferecido para uma catástrofe destas é dinheiro sagrado, Tio Ambrósio!
– E, na minha opinião, é um pecado muito grave desviar essas verbas, mesmo que seja para outras obras de carácter social ou outros fins ditos filantrópicos. O povo, que, diante destas catástrofes, é muitíssimo generoso, deu o seu contributo com uma finalidade muito específica que, neste caso, era a de socorrer as vítimas, nomeadamente procurando reconstruir as casas ardidas e ajudando a erguer as pequenas empresas que eram o sustento das famílias que viviam naqueles lugares.
– No que se refere à Igreja Diocesana, penso que os donativos foram canalizados e estão a ser geridos nesse sentido. As notícias que me chegam é que foram sinalizadas algumas situações e que, por exemplo, há casas que já estão a ser reconstruídas, a tempo de os moradores não verem chegar o tempo das chuvas como uma preocupação acrescida.
– Também tenho tido algumas notícias positivas sobre esse procedimento, Carlos!
– Mas o povo sabe que há outras instituições que receberam donativos e que ainda não prestaram contas a ninguém. Há quem fale até de desvios de fundos…
– Eu prefiro não acreditar, Carlos! Mas ele há gente para tudo, mesmo para se servir da desgraça alheia em proveito próprio…
– Esse é o aspecto que o nosso povo acha mais grave, Tio Ambrósio! Desviar verbas, para não empregar a palavra roubar descaradamente, é sempre uma falta grave. Eu na catequese aprendi que um dos dez mandamentos da Lei de Deus é “não roubar, nem injustamente reter ou danificar os bens do próximo”. Ora, o que foi dado para as vítimas dos incêndios é a eles que pertence! A maioria deles ficaram na miséria, ou mesmo nos limites da indigência. Por isso o nosso Liberato é do parecer que tocar indevidamente nestes donativos, além de ser contra o mandamento da Lei de Deus, é cumulativamente um dos “pecados que bradam aos céus”, pois se trata, em última análise de “oprimir os pobres”.
– O Liberato quando fala, habitualmente é certeiro naquilo que afirma. Eu não diria melhor, Carlos. Vai lá com Deus, porque eu vejo que estás com alguma pressa.
– Adeus, Tio Ambrósio! E obrigado pelos seus ensinamentos!
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