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21/10/2018

À SOMBRA DO CASTANHEIRO (21-10-2018)

— Estava a ver que hoje já não me vinhas visitar, Carlos!
— Desculpe-me, Tio Ambrósio! Quando saí de casa, logo depois do saboroso almoço que a Joana preparou para a família…
— Como sempre! A Joana é uma cozinheira de mão cheia! Acredita que já tenho saudades de degustar uma daquelas sopas de feijão inchado que ela faz como ninguém!
— Fica já convidado para o próximo domingo, Tio Ambrósio! Não posso garantir-lhe o inchaço do feijão, até porque desse mal sofrem muitos por aí, não sabendo se essa característica sobra para o feijão. Também lhe não garanto uma sopa de feijão-frade, porque este mundo está cheio de homens e mulheres de duas caras, de modos que não sei se ainda haverá feijão de duas caras. Mas, seja manteiga, seja catarino, seja preto, seja mesmo rajado, posso garantir-lhe que feijão não vai faltar para a sopa, ou mesmo para o prato principal, que a feijoada é outra das especialidades da Joana.
[...]

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29/04/2018

AO CALOR DA FOGUEIRA (29-04-2018)

– Vamos ver se, logo no início do mês de Maio, passamos os nossos encontros para a sombra do seu castanheiro, Tio Ambrósio! A modos que estou a ficar saturado de chuvas e trovoadas…
– Qualquer dia estás a pedir a Deus que envie uns aguaceiros e umas noites mais frescas, Carlos! Somos todos assim, nunca estando satisfeitos com o que a natureza nos dá. Se está chuva, queremos sol; se está sol, queremos chuva. Neste assunto estou como o Quintino, que por aqui passou um dia destes para me convidar para o seu aniversário. Dizia-me ele que ainda bem que não somos nós a comandar o tempo que há-de fazer em cada dia. Se fora assim, a bulha entre todos e o desacordo das partes seriam muito maiores que o que por vezes enxergamos na nossa assembleia da república.
– Bem observado, Tio Ambrósio! Aquilo, de quando em quando, parece andar por lá o diabo à solta…
– E umas vezes o mafarrico veste calças e, logo no dia seguinte, já veste saias. É só para confundir o pessoal, Carlos!
– Ele é um artista para armar confusões, Tio Ambrósio! Parece-me mesmo que não há maior especialista em tentar baralhar o juízo dos cidadãos do que esse a que o povo apelida de “o tal amigo”…
– E que alguns dizem que nem sequer existe, Carlos! Tu acreditas na existência do Diabo?
– Acredito, e quase que até ia jurar que já o vi mais que uma vez!
– A sério, Carlos? Não digas isso muito alto, porque ainda te pode acontecer seres abordado por algum jornalista para lhe concederes uma entrevista em exclusivo sobre esses teus encontros e diálogos com o chefe dos demónios…
– Não vamos tão longe, Tio Ambrósio! Eu não disse que já entabulei conversa com ele, mas que me parece que já o devo ter visto por mais que uma vez.
 – E não te disse nada, mesmo nada, Carlos?
– Não, porque eu não lhe dou autorização para isso! Quando me parece que é ele mesmo, ou disfarçado em figura de gente, eu faço logo o sinal da cruz, e sinto-me em paz. Porque ele gosta muito de armar confusões, de iludir as pessoas, de levar a juventude a pensar que só o dinheiro é que nos pode fazer felizes, e de nos acometer com outras ciladas mais ou menos encapotadas… mas com a Cruz não quer nada!
– Eu sempre ouvi dizer que alguns fogem do trabalho como o Diabo foge da Cruz! Será por essa razão, Carlos?
– Evidentemente, Tio Ambrósio! E olhe que, além do que lhe disse, eu estou convencido que, tal como ele se atreveu a tentar o próprio Jesus no deserto, hoje vai-nos tentando de todas as formas e feitios, a todos os dias e a todas as horas…
– Estás mesmo convencido disso?
– Claro! Até foi vossemecê que um dia me ensinou que o demónio “vagueia pelo mundo para a perdição das almas”. Certamente que o Tio Ambrósio ainda não mudou de ideias, sobretudo em matéria de doutrina.
– É verdade que não mudei, Carlos! Eu estava só a experimentar-te, para ver se és um homem de convicções firmes, ou se também és dos que se deixam ir na onda modernista que afirma a não existência do Demónio! Aliás, eu penso que essa de fazer pensar os homens e as mulheres que ele não existe, é precisamente uma das suas maiores tentações. Já o Papa Beato Paulo VI o afirmou numa das suas catequeses ao povo reunido na Praça de S. Pedro. De facto, se o pessoal se convencer que ele não existe, deixa-lhe caminho livre para actuar à sua vontade, para inventar mais um sem-número de disfarces, pois como tu disseste e muito bem, ele é um mestre exímio em se disfarçar das mais diversas formas e feitios. Antes de mais, tem uma lábia que só visto. Por vezes, e sabendo que por esse lado ninguém o ultrapassa, fico mesmo a pensar se ele não incarnará na pessoa de alguns deputados e deputadas, que têm resposta para tudo, que fazem as propostas mais estapafúrdias como se fossem coisa séria e honesta…
– Esse é um dos truques, Tio Ambrósio! O mafarrico gosta de passar por um cavalheiro sério, sempre bem-posto e bem relacionado…
– Cavalheiro ou cavalheira, Carlos! De resto eu não sei se não foi ele a inspirar essa de se apresentar para discussão e aprovação uma lei que permita que seja cada um a decidir, aí por volta dos dezasseis anos, se quer pertencer ao género masculino, ou se prefere ser feminino, para assim iludir ainda mais facilmente toda a sua clientela…
– Quando aparecem assim ideias estranhas, o povo costuma dizer que “uma dessas não lembrava sequer ao diabo”.
– Mas o que esqueceu ao tal amigo lembrou a alguns dos seus comparsas presentes na nossa assembleia de deputados, eles e elas. Eu não sei mesmo, se o povo não tomar uma atitude séria e firme, se estes fulanos não darão cabo dos princípios da nossa civilização ocidental, não ficando pedra sobre pedra do edifício que levou séculos a pôr de pé.
– Esse pode ser mesmo um dos objectivos do Diabo que anda por aí à solta, Tio Ambrósio! Eu não me admirava nada que o embusteiro entrasse com figura de gente no Parlamento para fazer crer que é um bem aquilo que não passa de uma estranha aberração. O Liberato até costuma dizer que é uma aberração execrável!
– Eu não gastaria muito do meu tempo a buscar adjectivos que qualifiquem aquilo que, em meu entender, é inqualificável, Carlos. Que não é coisa boa, não é! Podem doirar a pílula, para fazerem crer ao povo que estão a ser defendidas e garantidas as suas liberdades, mas a mim não me levam na cantiga…
– Outra coisa em que o chavelhudo é exímio, Tio Ambrósio! O qualificativo não é meu, mas do mestre Gil Vicente que, se cá viesse hoje, haveria de escrever pelo menos uma dúzia de peças teatrais, na tentativa de desmontar a farsa que os nossos deputados persistem em representar, com guião de um pequeno número deles, que estão em todas para parecerem muitos.
– Valha-nos Santo Ambrósio, Carlos!
– E santo Agostinho, e S. Gregório, e todos os santos da corte celeste!

15/04/2018

Ao calor da fogueira (15-04-2018)

– Diziam por aí algumas aves agoirentas que iríamos ter um ano de seca, mas, pelos vistos, enganaram-se redondamente, Tio Ambrósio! Nas fontes ainda não é demais, mas algumas terras já estão saturadas…
– Antes fartura que miséria, Carlos! Mas o que pode acontecer é termos agora em excesso e, lá para Julho e Agosto, andarmos já de mãos erguidas a pedir a mercê de umas gotas que nos permitam ver as uvas engrossar para termos uma vindima farta e de boa qualidade.
– E quem fala em uvas, fala em tudo o resto que nós ainda vamos persistindo em cultivar nas nossas pequenas courelas. Mal dá para viver, é verdade, mas nós gostamos disto. Eu pelo menos tenho um amor à terra que dificilmente me adaptaria a um outro tipo de trabalho, mesmo que fosse mais limpo e melhor remunerado. Não consigo passar sem este cheiro a terra lavrada a entrar-me pelas narinas, sem o ruminar dos bezerros de criação e sem uma fornada de broa de milho para, no tempo dela, comer com uma boa sardinha assada…
– Já quase todos se foram embora, Carlos! Mas é bom que fiquem por cá ao menos uns líricos como tu, que sempre nos fazem lembrar aqueles velhos tempos em que, por esta altura, já estava aí tudo lavrado e os batatais a despontarem da terra…
– Coisa bonita de se ver, Tio Ambrósio! Mas a verdade é que só mesmo por teimosia um homem continua ligado aos trabalhos agrícolas, sobretudo quando as culturas são feitas a esta escala reduzida de meia dúzia de leiras. Eu produzo milho e batata para consumo lá em casa, porque ao menos sei o que como e o que dou a comer aos meus filhos. Mas toda a gente sabe que, se eu fosse a vender os produtos, não tiraria deles qualquer rendimento. A batata que eu semeio fica-me quatro ou cinco vezes mais cara do que a que vende o Sanguessuga lá no mini-mercado. E quem diz a batata diz o resto, nomeadamente as hortaliças e as frutas. E se passarmos para as carnes, então nem se fala! Ele vende lá frangos ao preço da chuva…
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17/12/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (17-12-2017)

– Bendito seja Deus que nos mandou dois dias de chuva! Ainda não chega para as necessidades, mas é já uma boa ajuda, porque estava tudo seco, Tio Ambrósio! Olhe que até para apanhar o musgo para o presépio idealizado pela minha pequena tive que correr montes e vales. Isto é um modo de dizer, porque no pedaço de pinhal que sobrou dos incêndios encontrei mais que o necessário…
– Eu também já montei o meu, Carlos! Uma coisa muito simples, mas a que eu atribuo grande significado. Uma cabana construída com duas pedras e uma laje a servir-lhe de cobertura, sem luzes de várias cores. A iluminação é feita com uma simples lâmpada de azeite. E este ano optei por não colocar nem a vaca nem o burrinho, porque os incêndios deram cabo dos pastos…
– O Tio Ambrósio está a usar uma linguagem muito figurada. Os animais que colocamos nos nossos presépios não precisam de forragem…
– Mas precisam os outros, Carlos! E olha que não tem sido fácil para muitos pastores encontrar alimento para os seus rebanhos. O que tem valido a muitos é a grande solidariedade que se gerou em algumas regiões do país, que enviaram toneladas de pasto para os locais mais atingidos por este flagelo que tão cedo não vai abandonar as nossas cabeças.
– A pouco e pouco tudo vai regressar ao normal. Por isso, no presépio lá de casa há muitas luzes, muita gente a passar pelos caminhos, e muitos animais, desde um cão que guarda o rebanho das ovelhas, até ao galo que, colocado no cimo de um telhado de xisto, acorda todo o povoado logo pela manhã…
– E nem vaca nem burro, Carlos!
– Já lá vamos, Tio Ambrósio! Por causa do burro é que eu, este ano, tive que voltar ao presépio. Estou a falar do presépio verdadeiro, daquele em que a Puríssima Virgem Maria deu à luz “Aquele que, por nós homens e para nossa salvação, desceu do Céu”…
– Voltaste a ser brindado com a graça de mais um sonho natalício! És um rapaz cheio de sorte! Conta-me cá como tudo aconteceu!
– Aconteceu como das outras vezes, Tio Ambrósio! Como ao burro de barro do nosso presépio já faltava uma das orelhas, a minha pequena não se calava, dizendo à mãe para comprar um burro novo, porque havia deles à venda na loja do Sanguessuga. E tanto clamou que, já ao anoitecer, eu tive que pôr os pés ao caminho e ir comprar o animal ao Manuel das Chagas. Deve ter sido por isso que, nessa noite, mal me estendi na cama, adormeci que nem um justo e, passados momentos, estava a sonhar com um burro de verdade, que alguém, de quem já nem o nome me lembro, tinha deixado ao meu cuidado para, na noite de Natal, levar ao presépio de Belém, porque tinha nascido ali um Menino muito pobre, que precisava do bafo quente de um jerico e de uma vaca, para não tiritar de frio.
– E tu montaste no burro, e aí vais, todo janota, até onde o sonho te quis levar…
– Mais ou menos isso, Tio Ambrósio! Mas como a figura dos meus sonhos me falara também de uma vaca, resolvi passar pelo meu estábulo e levar a Malhada, que é mansa como a terra. Não me pergunte por onde passei, nem que caminhos percorri, porque a lembrança que tenho a seguir é a de, montado no jerico e com a Malhada à soga, ter chegado a um terreiro, onde me aguardava um homem vestido com uma túnica castanha e que, fazendo-me sinal para eu parar, me perguntou se era eu o senhor Carlos do Cabeço. Saltei do burro e, como quem se apresentava para cumprir uma missão importante, disse que sim, ao que ele me respondeu, numa voz muito pausada, mas firme, que fora ele mesmo a requisitar os meus serviços, porque lhe haviam dito que sou uma pessoa sempre pronta a ajudar os pobres e desvalidos. Depois estendeu-me a mão calejada e fez a sua apresentação. O seu nome era José, carpinteiro de profissão, e tinha vindo a Belém para se recensear com a sua jovem esposa que, tendo chegado o seu tempo, se vira na necessidade de dar à luz num local muito pobre, por não haver lugar na única hospedaria da pequena cidade. Com frio que estava, a presença dos dois animais era fundamental, constituindo como que um aquecimento central para o acanhado apartamento.
– Mais propriamente um curral!
– Eu não queria usar esse termo para designar o local onde nasceu o Filho de Deus e da Virgem Santa Maria. Mas o Tio Ambrósio tem razão. Aquilo era mesmo um curral nos arredores da pequena cidade, onde os pastores, em noites de maior invernia, abrigavam os seus rebanhos.
– E depois das apresentações, entraste lá dentro…
– O Patriarca José, com uma alanterna de azeite, foi à frente para indicar o caminho. Eu fui atrás com a Malhada, que parece que até já conhecia o local, pois foi logo deitar-se ao lado do Menino deitado nuns paninhos simples que cobriam um molho de feno que, à falta de melhor, servia de berço. Logo o animal começou a desempenhar a sua função, aquecendo com o seu bafo os pezinhos do Divino Infante, que, numa noite daquelas, deviam estar mais que gelados. Depois, aos poucos, o curral foi ficando iluminado, com uma luz tão suave, que eu não consegui imediatamente identificar de onde vinha. De qualquer modo, aquela claridade permitiu-me ver as feições belíssimas da jovem Mãe, que estava de joelhos e de mãos postas, numa atitude de pura contemplação diante do mistério daquele Menino.
– E tu, Carlos?
– Eu senti um impulso irresistível de cair com ambos os joelhos por terra e tentei imitar a Virgem Maria, enquanto o jerico se foi colocar do outro lado do Menino, colocando por terra, primeiro as patas dianteiras, e depois também as detrás, deixando, nesse acto, escapar um pequeno sinal sonoro. Arregalei os olhos e logo reconheci o Fogueteiro, o meu companheiro de vigílias semelhantes em anos anteriores. Fiquei contente, porque vi que, ao lado do burro, estava com a minha gente!
– E depois?
– O que veio a seguir irei contar-lho na próxima semana, que é mesmo no dia da Consoada. Virei buscá-lo a tempo, e se formos a pé, iremos conversando pelo caminho. Pode ser?
– Pode, Carlos! Vai lá com Deus!

10/12/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (10-12-2017)

– Boas e santas tardes nos dê Deus, Tio Ambrósio!
– A todos nós e aos nossos familiares, conhecidos, amigos e mesmo inimigos, se os tivermos! Que Deus, quando dá, é para todos. Como diz a Sagrada Escritura, que é sempre o meu livro de referência, Ele manda o sol e a chuva sobre todos, justos e injustos…
– E agora, com esta seca agravada que se instalou entre nós, bem preciso é que Deus nos mande o precioso dom da chuva. As dádivas de Deus são sempre preciosas! Mas quando a necessidade é muita, as nossas preces devem ser maiores. Sabemos, como dizem os grandes santos, fundados no Evangelho, que não é por dizermos muitas palavras que Ele nos escuta melhor, pois sabe muito bem daquilo que nós precisamos muito antes de nós Lho pedirmos…
– Creio que foi Santo Agostinho que escreveu, numa célebre carta a uma matrona romana, de nome Proba, ali por volta do ano 411, que as palavras que empregamos na oração destinam-se não tanto a lembrar ao Senhor as nossas necessidades, mas a lembrarmo-nos a nós próprios e a estimularmos a nossa devoção. Se um dia vier a talho de foice, havemos de falar mais longamente das cinco cartas que o santo Bispo de Hipona escreveu a essa viúva cristã e a Juliana, sua familiar, que o haviam consultado sobre a forma de entender o trecho do capítulo 8 da Carta de São Paulo aos Romanos ao afirmar que é o Espirito Santo que vem em ajuda da nossa fraqueza, “pois não sabemos o que havemos de pedir em nossas orações”.
– Esse seria um bom tema para o Tio Ambrósio desenvolver numa das nossas catequeses de adultos. Embora não esteja programada, parece-me que, a propósito desta falta de chuva, uma palestra sobre o que devemos pedir e forma como devemos fazê-lo cairia como sopa no mel.
– Todos nós, os cristãos, temos necessidade de meditar sobre a oração, partindo do modelo que o próprio Jesus nos deixou ao ensinar-nos o Pai-Nosso. Aliás, posso dizer-te que Santo Agostinho, na carta que aqui referimos, chega a afirmar que não há nenhum pedido bom que não esteja incluído na oração que o Senhor nos ensinou. A título de exemplo, quando dizemos que nos dê o pão nosso de cada dia, estamos a desejar que nos envie a chuva, sem a qual os nossos campos não podem produzir o trigo, o milho, o arroz ou a cevada…
– E, no “pão de cada dia”, estão incluídas também as forragens para os nossos animais…
– Está incluído tudo o que é necessário para a nossa subsistência, Carlos! Que temos nós que não seja dádiva gratuita de Deus Nosso Senhor?
– Nesse caso, no próximo encontro do grupo de catequese, eu vou propor uma lição dada pelo Tio Ambrósio, para nos explicar o sentido mais profundo duma oração que nós rezamos todos os dias, mas quase sem nos darmos conta do que estamos a dizer…
– Estes tempos de maior frio não são os melhores para eu sair de casa. Mas, lá para Março, que já é altura de sementeiras, tenho todo o gosto em partilhar convosco alguns dos ensinamentos que vou colhendo na leitura de bons livros e na meditação mais aprofundada que vou fazendo sobre a Palavra de Deus. Até podemos escolher como título para a palestra: “O que tem o Pai Nosso a ver com a plantação da batata”.
– O Liberato diria que é um título bastante prosaico…
– Eu sei que não tem a elevação devida para gente piedosa, Carlos! No entanto, podemos tirar proveito da curiosidade das pessoas, que logo pensarão que orações e batatas não cabem no mesmo saco.
– E cabem, Tio Ambrósio?
– Claro que cabem, Carlos! Então qual é a base da nossa alimentação aqui no Cabeço? É a batata, a par das hortaliças, do milho e do centeio, que agora já cultivamos em escala muito reduzida…
– Para si, a castanha continua a ter alguma importância…
– Muita importância, Carlos! Por isso, quando eu peço ao Senhor que me conceda o pão de cada dia, estou a pensar também nos meus castanheiros, sobretudo neste de grande porte que tenho aqui ao lado de casa. Tenho ali no caniço duas arrobas de castanhas que, depois de piladas, me vão servir para fazer saborosas sopas, sobretudo nesta época de maior friagem.
– A minha Joana usa mais o feijão catarino…
– Também esse entra no saco da oração do Pai Nosso, Carlos!
– A propósito de sopa, o Tio Ambrósio não se esqueça que, na noite de Natal, a ceia é lá em nossa casa! A minha mais pequena já anda toda entusiasmada com a montagem do presépio. Até me pediu para ir um bocadito mais cedo para a acompanhar na apanha do musgo, que é sempre um dos materiais que usamos em maior escala. Depois, coberto com duas mãos de farinha, até dá a impressão de um campo ou de um monte cheio de neve…
– A nossa imaginação é fabulosa, Carlos! Olha que até a neve depende da chuva! E, pelos vistos, arriscamo-nos este ano a ter um Natal com muito gelo, mas sem a neve a encher de brancura os nossos telhados e os nossos caminhos…
– Mas não vai ser por isso que o Menino Jesus deixará de descer até nós, para habitar connosco, na nossa tenda…
– Muito apropriada essa expressão, Carlos! Bem se vê que as lições da catequese de adultos têm sido proveitosas para todos, até porque são ocasião para lerdes alguns textos significativos da Sagrada Escritura.
– Eu sempre aprendi muito nestas conversas que, todos os domingos, aqui mantenho com o Tio Ambrósio! Mas digo-lhe que uma coisa não tira a outra! Posso antes dizer que uma e outra se completam, até porque muitas vezes, assim como quem se quer fazer passar por desentendido, eu puxo aqui algumas conversas que me surgem de dúvidas que me ficam dos encontros de catequese…
– Não penses que eu não tenho dado por isso, Carlos! Mas ainda bem que assim se passam as coisas, porque o importante é cada um de nós crescer em diversas dimensões, nomeadamente na dimensão espiritual da vida. Mas não te prendo mais, porque a tua filha deve continuar à tua espera para irdes apanhar o musgo para o presépio a montar em vossa casa.
– Então, fique com Deus, Tio Ambrósio!
– Que Ele te acompanhe sempre, Carlos!

03/12/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (03-12-2017)

– Até pensei que o Tio Ambrósio não estava em casa. Mas ainda bem que o vejo chegar e, ao que parece de perfeita saúde!
– Depois do repasto saí um bocadito para esticar as pernas, porque todos os médicos recomendam, sobretudo aos adultos seniores, que, para manutenção e equilíbrio da saúde, se deve fazer uma pequena caminhada diária ou, pelo menos, dia-sim dia-não. Quando marco encontro com o senhor doutor Secundino, o que ele me recomenda sempre, para além de não sei quantos comprimidos, é beber muita água e caminhar o bastante. E eu costumo ser mais ou menos cumpridor dos conselhos dos clínicos…
– Quando o tempo estiver de feição, se vossemecê quiser, até podemos combinar umas caminhadas, aproveitando para, pelo caminho, botarmos a conversa em dia. Em vez de estarmos aqui parados, fazemos as duas coisas ao mesmo tempo…
– Tu quase sempre apresentas sugestões acertadas. Mas, agora que estamos a chegar à quadra do Natal, possivelmente não é a época mais apropriada. Deixamos isso para depois da Senhora das Candeias, que os dias já estão a crescer, e pode acontecer que tenhamos aí umas tardes a cheirar a Primavera…
– Estou sempre à sua disposição, Tio Ambrósio!
– E agora que me contas da vida aí pelo nosso Cabeço?
– Olhe, Tio Ambrósio! Tanto eu como o Sanguessuga e o meu cunhado Acácio estamos bem contentes com a safra da azeitona. É verdade que muitos olivais foram pasto das chamas. Mas os que ficaram aqui mais perto do povo, produziram a bem dizer por eles e pelos que arderam. Eu nem sei se o Tio Ambrósio tem colheita que lhe dê para todo o ano…
– Tenho, Carlos! Este ano tive bastante, e as azeitonas até fundiram mais do que eu estava à espera, por causa da seca. Dá-nos Deus mais do que nós merecemos!
– É verdade! E as coisas vão-se restabelecendo aos poucos! Esta chuvita, embora pouca, já deu para que nos lameiros nasçam ervas, e eu penso que, lá mais para diante, vamos voltar a ver as nossas encostas revestidas de carquejas e de urzes…
– Este ano ainda não, Carlos! A natureza é pródiga em surpresas, mas, desta vez, a destruição foi muito grande, deixando marcas profundas que, mesmo que as coisas corram pelo melhor, vão demorar vários anos a desaparecer. Há feridas que deixam cicatrizes que só se curam com o tempo. Tu talvez faças uma ideia aproximada de quantas colmeias arderam só no concelho da Pampilhosa da Serra…
– Eu não me dedico à apicultura, Tio Ambrósio! Já me chega o trabalho que tenho para criar os bezerros. Mas ouvi dizer ao Quintino que, só a um compadre dele da freguesia de Fajão, arderam perto de duzentos enxames, o que lhe vem comprometer a venda do mel e da respectiva aguardente, que é uma das especialidades daquela região.
– E tudo isso vem contribuir para a desertificação daquelas terras, Carlos! A vida até aqui já não era nada fácil, pois as reformas são muito pequenas, sendo supridas por alguns centos de euros auferidos destas culturas, quer do mel, quer do medronho, quer da venda de algumas árvores.
– Ou mesmo até do leite e do queijo produzido a partir do pastoreio dos poucos rebanhos que ainda existiam. Mesmo que os pastos se refaçam, um rebanho de ovelhas ou de cabras demora bastante tempo a restabelecer-se. A não ser que se vão adquirir animais a outros lugares do país…
– São muitas dificuldades juntas, a acrescentar à mais significativa de todas, que é a do envelhecimento da população do interior do país. Já aqui temos conversado várias vezes sobre a falta de gente nova. As escolas fecharam. E essas actividades que referimos são exercidas por gente já bastante avançada nos anos que, olhando à sua volta, não sei se está disposta a recomeçar praticamente do nada.
– Nós, os beirões, somos de rija têmpera, Tio Ambrósio! Mas acredito que esta circunstância sirva para alguns abandonarem as suas aldeias, deixando-as totalmente desertas. Espero bem que não…
– Pelo menos aparentemente, as autoridades do país estão dispostas a fazer com que a vida desta larga região retome o seu ritmo normal…
– A ver vamos, Tio Ambrósio! Os problemas alheios depressa esquecem a quem os não sente na pele! E atrás destes, outros vêm, como é agora o caso das muitas e variadas greves que, aos poucos, vão paralisando o país…
– Parece que não estás muito de acordo com as reivindicações dos trabalhadores, nomeadamente os ligados à função pública.
– Todos temos o direito de manifestar a nossa opinião, Tio Ambrósio! Só que a voz de alguns não é ouvida por ninguém, ao passo que a de muitos outros é ampliada pelos meios de comunicação social.
– E pelas greves, Carlos! O Sanguessuga contou-me há poucos dias que, tendo uma consulta marcada em Coimbra, para ele ou para a mulher, ficou que nem uma barata ao chegar ao respectivo local e receber a informação que, por falta de um funcionário, a senhora doutora não atenderia ninguém, adiando o acto clínico para o dia 23 de Fevereiro do ano que vem, que, por acaso até calha a uma sexta-feira, que é o dia mais propício para serem marcadas novas greves…
– Podia ser pior! Mas convenhamos que a saúde das pessoas não é propriamente um assunto com que se possa brincar…
– Brincar? Vai lá dizer essa aos sindicalistas, que ainda és corrido com uma manifestação de insultos! “A brincar – dizem eles – andam os governos há muito tempo com os trabalhadores”.
– E alguns têm razão, porque o sol quando nasce é para todos, Tio Ambrósio! Se a alguns é reconhecido o direito de progredirem nas suas carreiras, parece-me justo que os que ficaram para trás reclamem…
– Eu concordo com os princípios da justiça decorrente da igualdade, Carlos! Só que me parece que o bolo disponível é capaz de não ser suficiente para todos saciarem a sua fome. E o que acontece é que quem mais berra mais mama, não se interessando com os que não conseguem nem sequer obter umas pequenas migalhas que caem quando se sacode a toalha da mesa das conversações.
– E daí surgem novas lutas, cada classe procurando falar mais alto que as outras, de tal forma que se chega a uma barulheira tal que ninguém se entende…
– Sábio é o povo que, desde há muito, diz que “em casa onde não há pão, todos ralham e (se calhar) todos têm razão”!
– Será, Tio Ambrósio?

26/11/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (26-11-2017)

– Louvado seja Deus! Pensei que já nem vinhas, Carlos!
– Boa tarde lhe dê Deus, Tio Ambrósio! Vejo que já se passou de armas e bagagens aqui para o calor da sua fogueira…
– Graças a Deus vieram os primeiros pingos de chuva e, depois das três, sopra aí uma aragem fria vinda do Norte. Daí que, apesar de me ter vacinado contra a gripe, o melhor é recolher-me cá para dentro, que o seguro morreu de velho. Mas tu vens aí como se ainda fosse Verão!
– A Joana já me aconselhou a trazer um agasalho. Mas desta vez ainda resisti, porque penso que este chuvisco vai ser de pouca dura. Infelizmente! Nós bem que precisávamos aí de duas ou três semanas de chuva, daquela miudinha, da que penetra lentamente na terra, que está sequiosa como quase não tenho lembrança.
– Nem eu me lembro duma seca assim, Carlos! Mas eu tenho confiança em Deus, e sei que Ele nos não vai deixar morrer à sede, embora todas estas alterações do clima sejam culpa dos homens, que não sabem respeitar a natureza.
– Possivelmente não poderemos culpar ninguém em especial, porque, nesta como em outras matérias, todos temos culpas no cartório…
– Uns mais que outros, Carlos! Se formos a analisar com alguma profundidade este problema, veremos que a raiz do mal começa na ganância de alguns que apenas pensam no dia de hoje, não tendo qualquer perspectiva de futuro. Há várias décadas que sábios avisados vêm chamando a atenção para os comportamentos que estão na origem destas nefastas alterações climáticas, mas os homens que estão à frente dos países mais industrializados e mais poderosos do mundo estão-se nas tintas para a resolução do problema. Vozes sensatas alertam para a necessidade de conservar as florestas, que são o pulmão do planeta que habitamos, pois sem elas não teremos o oxigénio necessário à vida, e o que vemos é a destruição das matas, quer através dos incêndios que tudo reduzem a cinzas, quer com o abate de árvores centenárias para comercializar as madeiras.
– O objectivo final é sempre o lucro, Tio Ambrósio!
– Eu digo que sim, Carlos! E quando se trata de obter lucros a qualquer preço, o homem passa por cima de todas as regras, pensando apenas no imediato, nem pensando que, com atitudes destas, estão a hipotecar o futuro dos filhos e dos netos…
– A natureza tem uma capacidade imensa de se regenerar, Tio Ambrósio! Mas penso que, neste capítulo, o homem já foi longe demais e que, nem que agora comece a arrepiar caminho, serão necessárias centenas de anos para que se volte ao equilíbrio inicial.
– Mas, olhando para a cena internacional, não vislumbro que os governantes dos povos estejam com intenção de resolver esta situação, que pode vir a desembocar na destruição total da nossa casa comum. Eu, devido à minha idade, já cá não estarei para ver as condições cada vez difíceis para a humanidade em geral, e para alguns povos em particular. Este problema da falta de água, que nós começamos a sentir nalgumas regiões do nosso país, arrasta consigo muitos outros que levam ao empobrecimento das famílias e dos cidadãos. Todos nós, que temos contacto com a terra e dela tiramos o fruto do nosso sustento, sabemos que sem água não há vida…
– E não há, Tio Ambrósio! De que nos vale termos as terras para semear se não tivermos água para regar as plantas? Eu sempre ouvi dizer que a água é o sangue da terra! Repare que, neste ano de seca grave, o seu castanheiro deu fruto saboroso. Mas o calibre da castanha foi muito mais pequeno do que em anos em que as chuvas vieram no seu devido tempo.
– Sem chuva e sem calor, nada se cria, Carlos!
– Água e calor na justa medida, Tio Ambrósio! Porque eu temo bem que, devido aos fogos que devastaram a nossa região, nos próximos anos a caloreira seja tal que não deixe germinar as sementes…
– Não vamos entrar num cenário tão catastrófico, Carlos! Mas não pensemos que tudo vai continuar a ser como dantes! A natureza tem as suas leis, e muitas vezes desculpa os nossos desvarios, mas lá vai chegar a altura em que reclamará para si os seus direitos.
– Seja como for, eu daqui a uns dias vou semear dois ou três regos de favas. Se vir que não nascem, repetirei a sementeira em Janeiro, porque, como diz o nosso povo, em Maio há sempre favas.
– Cá! Porque noutras latitudes ou não há favas, ou chegam mais cedo ou mais tarde! O teu cunhado Acácio, quando, na companhia da Ermelinda, fez a sua viagem aos países do Norte, tirou fotografias, que aqui me mostrou, a um canteiro de favas que ainda estavam em flor. E isto em pleno mês de Julho…
– Já não teriam tempo para dar grande fruto. Mas não há como experimentar! Assim como quem não quer a coisa, e para não passar por tolinho, vou semear, às escondidas, uma mão cheia delas em Abril ou Maio. Quem sabe se, em Setembro, no tempo das vindimas, não me poderei regalar com favas com entrecosto e um ovo escalfado?
– Seria bom que todos os pobres tivessem uma refeição dessas, pelo menos de vez em quando, Carlos! E, a propósito disso, no passado domingo, encontraste muitos casos de pobreza extrema cá na nossa freguesia?
– Da pobreza relacionada com a falta de alimento, não, graças a Deus! Mas o homem não tem fome e sede apenas de pão, Tio Ambrósio! Encontrámos alguns idosos a viverem sozinhos, num isolamento que não deve ser nada saudável. Demos conta destes casos ao nosso Presidente da Junta que, em ligação com o grupo paroquial de acção caritativa, vai envidar todos os esforços para que estas pessoas possam passar, pelo menos parte do dia, com outras pessoas no nosso pequeno centro social. E o Tio Ambrósio também podia passar por lá, de vez em quando, para conversar e até para merendar com aqueles jovens quase do seu tempo…
– São quase todos mais novos do que eu, Carlos! Mas os problemas e as agruras da vida deixaram em muitos marcas mais profundas que os próprios anos. De qualquer modo vou aceitar a tua sugestão, até porque também vai ser proveitoso para mim essa mudança de ares! Vai lá com Deus, Carlos!
– Até domingo, Tio Ambrósio!

19/11/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (19-11-2017)

– Um bom dia nos dê Deus, Tio Ambrósio!
– A todos nós, Carlos! Incluindo até os nossos inimigos! Estou a ver que voltaste a madrugar! Olha que hoje o nosso Padre Feliciano marcou a celebração da Santa Missa para o meio-dia! Não te terás enganado nas horas?
– Eu estou habituado a erguer-me sempre cedo! Quando é possível ainda sigo o conselho daquela cantilena que todos repetíamos na escola vezes sem conta: “Deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer”.
– Também me incluo entre os que fazem desse adágio popular um princípio orientador do seu comportamento, até porque sei que a preguiça continua a ser a mãe de todos os vícios. Mesmo ao domingo, mantenho o meu horário de sempre!
– Pois eu passei por aqui agora, porque de tarde tenho aí umas voltas a dar na companhia do meu cunhado Acácio.
– Não me digas que destinastes este dia para fazer a visita a alguns doentes e pobres da nossa freguesia. É que ouvi dizer que o nosso querido Papa Francisco instituiu, para todos os cristãos, o penúltimo domingo do ano litúrgico como o “Dia Mundial dos Pobres”.
– Vossemecê está sempre em cima dos acontecimentos, Tio Ambrósio! Quem nos alertou para esta celebração foi o Liberato, já lá vão umas três semanas, no final do nosso encontro de catequese de adultos. E logo ali resolvemos fazer uma reflexão sobre este assunto, que será precedida de uma prática de estilo evangélico. Tal como os discípulos foram, dois a dois, a todos os lugares onde Jesus havia de ir, também nós nos decidimos a fazer a experiência de ir ao encontro de alguém que sintamos que vive em situação de pobreza efectiva, tentando concretizar o tema que o Papa lançou aos cristãos como um desafio para esta jornada: “Não amemos com palavras, mas com obras”.
– Aí está uma concretização daquele desejo do Santo Padre de ver a Igreja e os cristãos a levarem a mensagem de Cristo às periferias, ou seja, aos marginalizados da sociedade, aos mais esquecidos, aos que são verdadeiramente pobres, entendendo esta pobreza nos vários sentidos que ela pode ter. Porque há vários tipos de pobreza, Carlos!
– Nós sabemos, Tio Ambrósio! Mas também reconhecemos que, para além da esmola que se dá a quem estende a mão, há muitas outras formas de ir ao encontro dos que vivem nas tais periferias de que costuma falar o Papa Francisco. O Liberato recordou-nos que este deve ser um dia de verdadeiro encontro com os pobres, que se transforme numa partilha que, aos poucos, se vá tornando num estilo de vida. O Papa não se tem cansado de nos indicar o caminho, dando ele próprio o exemplo, e afirmando continuamente que Jesus se identifica com os mais pequenos e os mais pobres. “Tudo o que fizerdes a um destes mais pequeninos, é a Mim que o fazeis”– diz o Evangelho.
– Ide, Carlos! Mas não façais grande alarde dessa vossa acção! No contacto com os outros, especialmente com os que verdadeiramente precisam da nossa ajuda, temos que ser muito discretos. É ainda Jesus quem diz que, ao ajudares alguém que precisa, “não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita”. A melhor ajuda que podemos prestar aos outros é sempre silenciosa. Doutro modo, perde todo o seu valor!
– Nós estamos a aprender, Tio Ambrósio! Mas também sabemos que a celebração do
“I Dia Mundial dos Pobres” deve ter alguma visibilidade…
– Toda a gente deve saber que ele existe, que o Papa o instituiu, e para tanto tem que ser anunciado e divulgado entre os cristãos e a sociedade em geral. Mas, depois, a acção concreta dos grupos que vão para as tais periferias, deve ser o mais recatada possível, sob pena de não atingir as finalidades a que se propõe.
– Vamos fazer a experiência, Tio Ambrósio! Há por aí muita gente, mesmo alguns bons e piedosos cristãos que afirmam já não haver pobres na nossa terra. Vamos ver se isso é verdade! Vamos à cata deles, na certeza que havemos de encontrar muitos mais do que imaginávamos à partida.
– É verdade que há muitos lugares da terra onde os que sofrem de pobreza material são em muito maior número do que aqui nas nossas aldeias, onde, além do mais, já está bastante enraizado o bom costume da partilha com os que menos têm. Mas não podemos reduzir a pobreza ao seu aspecto material. Por vezes até podemos falar de pobreza moral, Carlos!
– Se podemos! Uma família onde os respectivos membros passam a vida numa zanga contínua, com insultos e até com episódios de violência doméstica, já ultrapassou há muito os limites da pobreza.
– Cá no Cabeço não conheço casos desses…
– Graças a Deus, a nossa população é toda ela cordata, com uma vida fundamentada nos bons princípios que, felizmente, ainda vão passando de pais para filhos. Mas o Papa manda-nos ir às periferias, sair da nossa rua, ir se for necessário às povoações vizinhas ou aos bairros problemáticos dos arredores das cidades maiores…
– Não vos ides atrever a tanto, Carlos! Para iniciarmos a experiência de celebração do primeiro Dia Mundial do Pobres, creio que nos basta a observação dos problemas, grandes ou mais pequenos, que estão patentes aqui na nossa freguesia. Penso que não temos casos de pessoas que passem propriamente fome. Mas começamos a ter, por exemplo, muitas pessoas de idade que não têm quem as acompanhe a uma consulta médica, quem lhes avie os medicamentos na farmácia, ou mesmo quem lhes vá comprar a mercearia à venda do Sanguessuga…
– Nesse último ponto, o Manuel das Chagas tem tudo controlado. Basta que lhe façam um telefonema, que ele se encarrega de fazer chegar as compras a toda a freguesia…
– Já é um bom serviço que se presta aos mais idosos que, só por isso mesmo, podem ser contados entre o número dos pobres.
– Eu até estou em crer que, nesta nossa primeira saída, iremos encontrar alguns casos de abandono, de gente que não tenha quem cuide da sua pessoa e das suas coisas.
– Esses são pobres, Carlos!
– Pobres ou carenciados, Tio Ambrósio?
– E qual é a diferença, Carlos? Tu sabes bem que a pobreza não diz respeito apenas à falta de bens materiais. Eu digo-te mais! Estou em crer que há muitos que precisam sobretudo de quem os ajude a recuperar os bens espirituais. Vai lá com Deus para essa vossa nobre missão!

12/11/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (12-11-2017)

– Um santo dia para si, Tio Ambrósio!
– Vem com Deus, Carlos! Mas tu deves ter-te enganado nas horas! O magusto está marcado para as três da tarde!
– Tem toda a razão, Tio Ambrósio! Mas eu preferi vir de manhã, para preparar umas coisas! O Sanguessuga também era para vir comigo, mas disse-me que teve insónias, que dormiu mal e, por isso, só vai aparecer mesmo da parte da tarde.
– E tu a que horas vais almoçar?
– Fomos à missa logo de manhã e, enquanto eu passo por aqui, a Joana foi adiantar as coisas, de tal modo que até vossemecê pode ir comer a nossa casa…
– Tu sabes bem que isso me daria muito prazer! Mas também entendes que hoje não é bem o dia mais apropriado para eu sai daqui, estando à espera de todo o pessoal do Cabeço e arredores para a castanhada do São Martinho!
– Não se preocupe, Tio Ambrósio! Foi mesmo por isso que eu resolvi passar por aqui da parte da manhã, para lhe dizer que tudo vai correr às mil maravilhas, mesmo com algumas pequenas alterações que resolvemos introduzir neste nosso encontro anual. Nós sabemos que não é neste dia que o Tio Ambrósio completa mais um aniversário, o que virá a acontecer lá para os fins da Primavera…
– Andaste a ver o meu cartão de cidadão, ou então foste ao nosso Padre Feliciano para ele verificar lá nos livros de registo da paróquia em que dia, mês e ano a minha mãezinha me deu à luz. Mas quero dizer-te que a realidade é muito diferente da que os registos apresentam. Tu talvez não saibas, mas eu esclareço-te que, naquela época, havia uma lei que obrigava os progenitores a registarem os seus rebentos no prazo de uma semana. Se assim não acontecesse, a multa era pesada e, como deves calcular, o dinheiro era pouco. Passou-se isto com dezenas e dezenas de famílias. A forma mais fácil de contornar a lei era atrasar o registo de nascimento dos filhos por algumas semanas, ou mesmo por alguns meses…
– Não me diga que o Tio Ambrósio não sabe a sua verdadeira data de nascimento e, por isso, desconhece a sua idade exacta…
– Eu conheço muito bem todos esses pormenores! Mas, tanto no meu caso, como em muitos dos rapazes e raparigas do meu tempo, celebramos o aniversário num dia muito diferente daquele em que vimos pela primeira vez a luz do dia. Por isso posso dizer que a minha data de nascimento é secreta. Embora a ti, que és como se fosses meu filho, eu um dia venha pôr-te ao corrente de todas essas coisas. Mas, por agora, convém que eu não tenha a idade que todos vocês julgam que eu tenho, embora seja do conhecimento geral e dos habitantes do Cabeço em particular que eu sou quase do tempo do Penedo da Torre.
– Estamos todos de acordo consigo, Tio Ambrósio! Mas em conselho geral dos veteranos do Cabeço foi resolvido que fizéssemos de conta que o seu aniversário acontece neste dia em que todos nos juntamos aqui à sua volta para saborearmos as suas famosas castanhas e que, para dar início a esta comemoração festiva, fizéssemos algumas alterações ao cardápio do nosso encontro. Castanhas com fartura, vamos ter!
– Cinco arrobas chegam para todos?
– Chegam, Tio Ambrósio! Mas vossemecê nunca ouviu dizer que as castanhas assadas, além de jeropiga e da água-pé, casam muito bem com umas febras de porco na brasa?
– Agora esses mestres de culinária, que proliferam por aí como tortulhos, arranjam umas combinações todas esquisitas, de tal forma que a gente nem sabe muito bem o que está a deglutir…
– Não é o caso! Muito pelo contrário! A minha cunhada Ermelinda, acompanhada de uma equipa de outras senhoras do Cabeço, andou a fazer uma recolha de receitas antigas. Até foram subsidiadas para isso pelo nosso Presidente da Junta, o amigo Liberato, com a desculpa para dar este arrombo no orçamento, dizendo que isto é cultura…
– E é, Carlos! Sabermos como se alimentavam os nossos antepassados, e como aproveitavam os frutos da terra para o sustento das famílias, é uma questão verdadeiramente cultural. Eu já te disse muitas vezes que a castanha estava na base da alimentação de muitos dos nossos antepassados. Pelo menos aqui, na minha família, costumávamos comer sopa de castanhas durante quase todo o Inverno. A minha mãe que Deus tem costumava também fazer um saboroso doce de castanhas, que era um dos que mais apreciávamos por aturas do ano novo. Mas essa de comer castanhas assadas com febras de porco grelhadas na brasa para mim é novidade! Mas aceito que seja um acepipe de a gente comer e chorar por mais! Eu sempre ouvi dizer que um homem anda a aprender até morrer.
– Pois o meu cunhado Acácio deve estar aí a aparecer, a chefiar uma equipa de voluntários, para montarem o grelhador, enquanto algumas senhoras ficaram a temperar as febras da perna do suíno que foi abatido de propósito ontem à tarde. Tudo fresquinho, Tio Ambrósio! Nós, quando pensamos numa coisa, não brincamos em serviço!
– Espero que não venhais a ter problemas com as autoridades sanitárias, que agora não costumam deixar que esses costumes antigos se cumpram, dizendo que em primeiro lugar está a saúde dos cidadãos…
– Garanto-lhe que não vai haver problema nenhum! Hoje, além de castanhas fornecidas pelo Tio Ambrósio, e da boa pinga fabricada na adega particular do nosso amigo Agostinho, vamos ter febras de porco, assadas na brasa à moda antiga. Vai ver que toda a gente vai dar por bem empregue o tempo que gastou e que a procura de castanhas para confeccionar pratos típicos vai subir no Cabeço e em outros lugares aqui das redondezas.
– Cá fico à espera para ver, Carlos! O que te posso garantir é que as castanhas não vão faltar. Este ano são mais pequenas que o habitual, mas, em vez de uma comem-se duas ou três.
– Olhe! Nem de propósito! Está mesmo a chegar a equipa do Acácio que vai instalar o grelhador! Eu, entretanto, dou um salto a casa, porque disse à Joana que não demoraria muito tempo. Até logo, se Deus quiser!
– Vai e volta, Carlos!

05/11/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (05-11-2017)

– Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
– Para sempre seja louvado e sua Mãe Maria Santíssima! Vens hoje muito piedoso, Carlos! Há muito tempo que não recebia uma saudação matinal das que antigamente todos usávamos no nosso contacto diário.
– Bons costumes que se foram perdendo, Tio Ambrósio! Mas estamos sempre a tempo de os retomar! E eu penso que tudo vai com o hábito! No que à minha família diz respeito, eu sempre tenho ensinado os meus pequenos a dizerem: “bons dias nos dê Deus!”. Por vezes esquecem-se, e sei que, na escola, não é essa a linguagem oficial. Por isso, quando a mais pequena, que é a sua preferida, me veio dizer que ia deixar de se dirigir assim às colegas, eu disse-lhe que compreendia perfeitamente a sua posição. Mas fui-lhe adiantando que, em casa, me daria um gosto enorme se se habituasse a este modo de saudar os pais e os irmãos.
– Vai insistindo, Carlos! Dizem que o ser humano é um animal de hábitos, e que tanto pode aprender os bons como os maus…
– Tenho a impressão que os hábitos maus, nomeadamente no campo da linguagem, são muito mais fáceis de adquirir, Tio Ambrósio! O Sanguessuga, que está habituado, na sua loja de secos e molhados, a ouvir de tudo um pouco, embora, quando começa a ser demais, costume chamar à atenção os clientes que já beberam um copito que, se querem dizer asneiras, sabem muito bem onde é a porta de saída… O Sanguessuga, dizia eu, um dia destes foi a Coimbra e vinha de lá escandalizado com os rapazes e as raparigas que estudam na Universidade, e que vão ser os médicos, os advogados e os dirigentes políticos de amanhã.
– A rapaziada está habituada ao calão!
– O Sanguessuga garantiu-me que nunca, nem mesmo quando andou na tropa, tinha ouvido tantos palavrões juntos como os utilizados por um grupo misto de rapazes e raparigas que, pelo seu modo de trajar, devem frequentar a Universidade. Nem os carroceiros de antigamente falavam de modo tão grosseiro!
– Eu escandalizado não fiquei, Carlos! Mas senti-me triste quando um jornal transcreveu, um dia destes, uma escuta telefónica entre dois políticos que desgovernaram o país durante alguns anos.  A linguagem era da mais baixa que se possa imaginar. Tão degradante como aquilo só a conversa entre dois pedreiros que andaram aqui ao lado a fazer uma obra para o Alberto Constantino, e que, em cada três palavras utilizadas, duas pelo menos eram asneiras daquelas de fazer corar o Bocage.
– São os tempos em que vivemos, Tio Ambrósio! E eu, quando oiço, vou-me calando porque também não sou perfeito. Mas o Tio Ambrósio pode falar, porque nestes anos todos não ouvi da sua boca uma única expressão que uma criança não pudesse escutar.
– Também não sou perfeito, Carlos! Mas, se me vem a tentação, nomeadamente quando me enervo, depois procuro corrigir-me…
– Eu nunca vi o Tio Ambrósio enervado!
– Quem te escutar há-de pensar que basta lavarem-me os pés e colocarem-me no altar! Mas, infelizmente, não é assim! É verdade que já dei alguns passos importantes, como seja o de perdoar todas as injúrias que queiram lançar-me. No entanto, quando me ponho na presença de Deus, sinto-me como o profeta Isaías que, em circunstâncias semelhantes dizia: “Ai de mim, estou perdido, porque sou um homem de lábios impuros, que habita no meio de um povo de lábios impuros”.
– Nesse caso, que direi eu, Tio Ambrósio?
– Só quem não faz um bom exame de consciência é que não descobre que tem defeitos suficientes para não ter coragem de atirar pedras aos vizinhos. Mas quem descobre a sua indignidade e a sua pequenez, penso que está no bom caminho para se tornar melhor!
– A propósito, Tio Ambrósio! Veio-me agora à ideia de lhe perguntar se acha que os nossos políticos, eles e elas, são pessoas capazes de botarem a mão na consciência e perguntarem-se a si próprios se o seu procedimento é o mais correcto e o que melhor serve o povo que neles depositou a sua confiança.
– Tu fazes-me cada pergunta, Carlos! Sei lá! Eu vejo a cada passo ministros e deputados a afirmarem que nada lhes pesa na consciência. Quem sou eu para desdizer as suas afirmações?
– Não é preciso o Tio Ambrósio desdizer! Basta ouvirmos o que dizem e depois olharmos para os factos. Os factos é que desdizem as mentiras com que eles vão enganando o povo! O Sanguessuga até costuma afirmar que todo o político é um mentiroso encartado! E mais! Nós somos tão simplórios que ainda lhes pagamos para eles nos aldrabarem a torto e a direito…
– Não os podemos medir a todos pela mesma bitola, Carlos!
– Esse reparo fiz eu ao Sanguessuga!
– E ele?
– Sem pestanejar, corrigiu, dizendo que, com raríssimas e duvidosas excepções, todo o político é um mentiroso compulsivo!
– O Sanguessuga lá sabe as razões que o levam a fazer uma afirmação desse género! E como estamos em tempos de liberdade democrática, quem é que pode pôr em causa a veracidade de tal afirmação?
– O Manuel das Chagas até queria tornar a sua afirmação mais abrangente, misturando no mesmo saco a mentira e a corrupção.
– Mas tu não deixaste…
– Procurei botar água na fervura, chutando para canto, e remetendo o caso para o tribunal do Povo que, como todos sabemos, vai estar reunido aqui na próxima semana para a nossa habitual castanhada.
– É verdade, Carlos! No domingo que vem, quero aqui todos os habitantes do Cabeço e das povoações vizinhas para participarem no magusto que tenho todo o gosto em oferecer…
– O Tio Ambrósio oferece as castanhas! E chega! Porque nós estamos a tratar das entradas e das bebidas! Apesar de terem ardido algumas videiras, por este ano não vamos sentir a falta de uma pinga de estalo, da colheita do nosso comum amigo Agostinho, que prometeu abrir nesse dia uma das cubas, para todos podermos fazer a prova da pomada que promete estar excelente.
– A ver vamos, Carlos! E até pode acontecer que o convívio sirva para amenizarmos as nossas opiniões, nomeadamente sobre os pobres dos políticos…
– Pobres, Tio Ambrósio? Diga essa ao Sanguessuga!
– E digo, Carlos! Entretanto, tu vai lá com Deus!
– Obrigado pelos seus conselhos, Tio Ambrósio! Que Deus lhe pague!

17/09/2017

À SOMBRA DO CASTANHEIRO (17-09-2017)

– Santas tardes, Tio Ambrósio!
– Vem com Deus, Carlos! Hoje não me vais fazer qualquer pergunta, nem comentar as sondagens em relação às eleições autárquicas.
– Não estou para aí virado, Tio Ambrósio!
– Eu também não, Carlos! Gosto de falar de política a sério, de um bom debate, com gente que saiba o que diz, e que fundamente as suas opiniões numa prática saudável do exercício de algum cargo público. Ora desta política de trazer por casa, longe dela, Carlos! Não é por acaso que Políticos com P maiúsculo aparecem muito poucos, e esses nem sempre conseguem o apoio popular. Por norma, o povo deixa-se levar com muita facilidade por alguns charlatães que sabem aproveitar-se da ingenuidade dos menos instruídos.
– Somos assim, Tio Ambrósio! Reagimos mais com o coração do que com a cabeça. E depois de sermos enganados vemos que já não há nada a fazer! Que nós, o povo português, até somos dotados de bons e nobres sentimentos, de altruísmo, de espírito de partilha e de amor ao próximo. E o incrível é que haja quem se aproveite disto para daí auferir dividendos…
– Estás a referir-te a algum caso em concreto, Carlos!
– Até estou, Tio Ambrósio! É verdade que eu não sou nenhum entendido destas coisas, mas vou ouvindo aqui e ali, vou lendo os jornais e ouvindo os telejornais e as notícias na Rádio Renascença e, como qualquer homem dotado de inteligência, vou tirando as minhas dúvidas e formando as minhas opiniões. Eu e os outros!
– Nesta matéria, o melhor é cada um falar por si, Carlos!
– Eu sei, Tio Ambrósio! Mas o certo é que, com uma palavra daqui, com um comentário dali, a pouco e pouco vai-se formando a opinião geral dos cidadãos a que alguns dão o pomposo nome de opinião pública…
– Não sei se os grandes mestres da comunicação têm essa noção de opinião pública…
– Mas, pelo menos, há a voz corrente, Tio Ambrósio! Por exemplo a propósito dos incêndios, é voz corrente que, na absoluta maioria dos casos se trata não de qualquer incidente, mas verdadeiramente de fogo posto. E, mais do que isso, arranjem-se as desculpas que se arranjarem, ninguém convence o povo que não existem interesses por detrás destas tragédias. O povo aponta o dedo àqueles que presume que retiram lucros destas fatalidades que nos atingem todos os anos. O Sanguessuga, por exemplo, está convencido e afirma-o à boca cheia que, se não fosse o lucro de alguns, não haveria metade dos incêndios em Portugal. Porque, como ele costuma dizer, isto está inscrito no calendário como as festas ou como os jogos de futebol. Quando ainda estamos em Janeiro já alguns começam a sonhar com a “época dos incêndios”, como se não fosse possível passarmos sem este martírio anual.
– É preciso prevenir, Carlos!
– Eu sei, Tio Ambrósio! Mas ninguém convence o povo de que, uma vez organizados esses meios de prevenção, eles possam não ser usados…
– Estás a insinuar que há quem aproveite os incêndios para encher os bolsos…
– Não sou eu, Tio Ambrósio! É o povo que pensa assim! Ainda ontem à tarde, na loja do Sanguessuga, quando deu a notícia na televisão sobre dois novos focos de incêndio que começaram a lavrar para os lados da Covilhã e na martirizada zona do pinhal, logo houve quem aventasse culpas a companhias e empresas cuja actividade lucrativa está ligada a este sector.
– Eu seria incapaz de imputar um crime tão grave a gente que é ou pelo menos se apresenta como honesta e acima de toda a suspeita…
– Eu pessoalmente também, Tio Ambrósio! Mas houve alguém lá do grupo que, dentro do mesmo assunto, perguntou o que foi feito do dinheiro que se juntou para socorrer as vítimas do incêndio de Pedrógão. Foram bastantes as instituições que se propuseram como colectoras dos contributos populares, e parece que nem todas prestaram as contas como devia ser. O dinheiro oferecido para uma catástrofe destas é dinheiro sagrado, Tio Ambrósio!
– E, na minha opinião, é um pecado muito grave desviar essas verbas, mesmo que seja para outras obras de carácter social ou outros fins ditos filantrópicos. O povo, que, diante destas catástrofes, é muitíssimo generoso, deu o seu contributo com uma finalidade muito específica que, neste caso, era a de socorrer as vítimas, nomeadamente procurando reconstruir as casas ardidas e ajudando a erguer as pequenas empresas que eram o sustento das famílias que viviam naqueles lugares.
– No que se refere à Igreja Diocesana, penso que os donativos foram canalizados e estão a ser geridos nesse sentido. As notícias que me chegam é que foram sinalizadas algumas situações e que, por exemplo, há casas que já estão a ser reconstruídas, a tempo de os moradores não verem chegar o tempo das chuvas como uma preocupação acrescida.
– Também tenho tido algumas notícias positivas sobre esse procedimento, Carlos!
– Mas o povo sabe que há outras instituições que receberam donativos e que ainda não prestaram contas a ninguém. Há quem fale até de desvios de fundos…
– Eu prefiro não acreditar, Carlos! Mas ele há gente para tudo, mesmo para se servir da desgraça alheia em proveito próprio…
– Esse é o aspecto que o nosso povo acha mais grave, Tio Ambrósio! Desviar verbas, para não empregar a palavra roubar descaradamente, é sempre uma falta grave. Eu na catequese aprendi que um dos dez mandamentos da Lei de Deus é “não roubar, nem injustamente reter ou danificar os bens do próximo”. Ora, o que foi dado para as vítimas dos incêndios é a eles que pertence! A maioria deles ficaram na miséria, ou mesmo nos limites da indigência. Por isso o nosso Liberato é do parecer que tocar indevidamente nestes donativos, além de ser contra o mandamento da Lei de Deus, é cumulativamente um dos “pecados que bradam aos céus”, pois se trata, em última análise de “oprimir os pobres”.
– O Liberato quando fala, habitualmente é certeiro naquilo que afirma. Eu não diria melhor, Carlos. Vai lá com Deus, porque eu vejo que estás com alguma pressa.
– Adeus, Tio Ambrósio! E obrigado pelos seus ensinamentos!