– Vamos ver se, logo no início do mês de Maio, passamos os nossos encontros para a sombra do seu castanheiro, Tio Ambrósio! A modos que estou a ficar saturado de chuvas e trovoadas…
– Qualquer dia estás a pedir a Deus que envie uns aguaceiros e umas noites mais frescas, Carlos! Somos todos assim, nunca estando satisfeitos com o que a natureza nos dá. Se está chuva, queremos sol; se está sol, queremos chuva. Neste assunto estou como o Quintino, que por aqui passou um dia destes para me convidar para o seu aniversário. Dizia-me ele que ainda bem que não somos nós a comandar o tempo que há-de fazer em cada dia. Se fora assim, a bulha entre todos e o desacordo das partes seriam muito maiores que o que por vezes enxergamos na nossa assembleia da república.
– Bem observado, Tio Ambrósio! Aquilo, de quando em quando, parece andar por lá o diabo à solta…
– E umas vezes o mafarrico veste calças e, logo no dia seguinte, já veste saias. É só para confundir o pessoal, Carlos!
– Ele é um artista para armar confusões, Tio Ambrósio! Parece-me mesmo que não há maior especialista em tentar baralhar o juízo dos cidadãos do que esse a que o povo apelida de “o tal amigo”…
– E que alguns dizem que nem sequer existe, Carlos! Tu acreditas na existência do Diabo?
– Acredito, e quase que até ia jurar que já o vi mais que uma vez!
– A sério, Carlos? Não digas isso muito alto, porque ainda te pode acontecer seres abordado por algum jornalista para lhe concederes uma entrevista em exclusivo sobre esses teus encontros e diálogos com o chefe dos demónios…
– Não vamos tão longe, Tio Ambrósio! Eu não disse que já entabulei conversa com ele, mas que me parece que já o devo ter visto por mais que uma vez.
– E não te disse nada, mesmo nada, Carlos?
– Não, porque eu não lhe dou autorização para isso! Quando me parece que é ele mesmo, ou disfarçado em figura de gente, eu faço logo o sinal da cruz, e sinto-me em paz. Porque ele gosta muito de armar confusões, de iludir as pessoas, de levar a juventude a pensar que só o dinheiro é que nos pode fazer felizes, e de nos acometer com outras ciladas mais ou menos encapotadas… mas com a Cruz não quer nada!
– Eu sempre ouvi dizer que alguns fogem do trabalho como o Diabo foge da Cruz! Será por essa razão, Carlos?
– Evidentemente, Tio Ambrósio! E olhe que, além do que lhe disse, eu estou convencido que, tal como ele se atreveu a tentar o próprio Jesus no deserto, hoje vai-nos tentando de todas as formas e feitios, a todos os dias e a todas as horas…
– Estás mesmo convencido disso?
– Claro! Até foi vossemecê que um dia me ensinou que o demónio “vagueia pelo mundo para a perdição das almas”. Certamente que o Tio Ambrósio ainda não mudou de ideias, sobretudo em matéria de doutrina.
– É verdade que não mudei, Carlos! Eu estava só a experimentar-te, para ver se és um homem de convicções firmes, ou se também és dos que se deixam ir na onda modernista que afirma a não existência do Demónio! Aliás, eu penso que essa de fazer pensar os homens e as mulheres que ele não existe, é precisamente uma das suas maiores tentações. Já o Papa Beato Paulo VI o afirmou numa das suas catequeses ao povo reunido na Praça de S. Pedro. De facto, se o pessoal se convencer que ele não existe, deixa-lhe caminho livre para actuar à sua vontade, para inventar mais um sem-número de disfarces, pois como tu disseste e muito bem, ele é um mestre exímio em se disfarçar das mais diversas formas e feitios. Antes de mais, tem uma lábia que só visto. Por vezes, e sabendo que por esse lado ninguém o ultrapassa, fico mesmo a pensar se ele não incarnará na pessoa de alguns deputados e deputadas, que têm resposta para tudo, que fazem as propostas mais estapafúrdias como se fossem coisa séria e honesta…
– Esse é um dos truques, Tio Ambrósio! O mafarrico gosta de passar por um cavalheiro sério, sempre bem-posto e bem relacionado…
– Cavalheiro ou cavalheira, Carlos! De resto eu não sei se não foi ele a inspirar essa de se apresentar para discussão e aprovação uma lei que permita que seja cada um a decidir, aí por volta dos dezasseis anos, se quer pertencer ao género masculino, ou se prefere ser feminino, para assim iludir ainda mais facilmente toda a sua clientela…
– Quando aparecem assim ideias estranhas, o povo costuma dizer que “uma dessas não lembrava sequer ao diabo”.
– Mas o que esqueceu ao tal amigo lembrou a alguns dos seus comparsas presentes na nossa assembleia de deputados, eles e elas. Eu não sei mesmo, se o povo não tomar uma atitude séria e firme, se estes fulanos não darão cabo dos princípios da nossa civilização ocidental, não ficando pedra sobre pedra do edifício que levou séculos a pôr de pé.
– Esse pode ser mesmo um dos objectivos do Diabo que anda por aí à solta, Tio Ambrósio! Eu não me admirava nada que o embusteiro entrasse com figura de gente no Parlamento para fazer crer que é um bem aquilo que não passa de uma estranha aberração. O Liberato até costuma dizer que é uma aberração execrável!
– Eu não gastaria muito do meu tempo a buscar adjectivos que qualifiquem aquilo que, em meu entender, é inqualificável, Carlos. Que não é coisa boa, não é! Podem doirar a pílula, para fazerem crer ao povo que estão a ser defendidas e garantidas as suas liberdades, mas a mim não me levam na cantiga…
– Outra coisa em que o chavelhudo é exímio, Tio Ambrósio! O qualificativo não é meu, mas do mestre Gil Vicente que, se cá viesse hoje, haveria de escrever pelo menos uma dúzia de peças teatrais, na tentativa de desmontar a farsa que os nossos deputados persistem em representar, com guião de um pequeno número deles, que estão em todas para parecerem muitos.
– Valha-nos Santo Ambrósio, Carlos!
– E santo Agostinho, e S. Gregório, e todos os santos da corte celeste!
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