– Eu não quero que o Tio Ambrósio fique ofendido comigo. Por isso vou vender-lhe esta novidade pelo mesmo preço que ma venderam a mim. Alguém terá dito aí no Cabeço que alguns cidadãos, com o nosso comum e fiel amigo Liberato à frente do movimento, se preparam para lhe prestarem uma honrosa, digna e justa homenagem…
– A mim? Não, Carlos! Aí deve haver engano! Eu tenho esta idade que tu sabes mas, graças a Deus, penso que estou ainda no meu juízo perfeito. E já o meu avô, nas suas orações da noite, em que todos o acompanhávamos com muito respeito e alguma sonolência, rezava um Padre Nosso ao Senhor para que nos desse juízo e entendimento até a hora da morte. Ainda hoje essa é uma das minhas intenções habituais, pelo que espero que Ele me não falte com um bocadinho de tino para me livrar dessa e doutras tentações do inimigo. Certamente foi alguém que te mandou sondar o terreno. Mas podes dizer-lhe abertamente que não. Já houve uma altura em que estive para escorregar numa armadilha dessas. Mas, depois de pensar maduramente, tive a coragem de rejeitar toda e qualquer proposta nesse sentido. Para um homem aceitar uma homenagem tem que estar convencido que fez alguma coisa de especial na vida, que fez uma descoberta importante, que prestou algum serviço relevante à comunidade. Ora, com este teu velho amigo, não se passou nada disso. Eu nunca passei de um cidadão normalíssimo, que vive do trabalho das suas mãos, que cava, semeia e rega como todos os outros cá no Cabeço para, desse modo, prover à sua digna mas frugal sustentação.
– Eu sei que o Tio Ambrósio é avesso a todas essas demonstrações exteriores. Mas, vendo bem, até será possível arranjar pelo menos uma meia dúzia de razões para todos, não digo lhe prestarmos uma homenagem, mas fazermos uma festa em que recordemos todo o seu percurso de vida e todo o bem que, quase sem ninguém dar conta, foi fazendo ao longo de uma vida tão longa e tão cheia.
– Agora vejo que te encomendaram o sermão, Carlos!
– O Tio Ambrósio conhece-me desde menino e moço, de tal modo que eu, na sua presença, não consigo dissimular aquilo que realmente estou a pensar. Por isso não pode levar a mal que as pessoas lhe queiram demonstrar quanto estão gratas pelos seus conselhos e quanto admiram o seu trajecto de vida, pois sempre conseguiu conciliar a modéstia e a humildade de um simples cavador de enxada do Cabeço com uma sólida formação intelectual adquirida na leitura de bons livros e na meditação dos acontecimentos…
– E sobretudo na proximidade com a Palavra de Deus, Carlos! Isso, porém, está ao alcance de todos, desde que sejam diligentes.
– A diligência é uma virtude difícil de adquirir, Tio Ambrósio!
– Como todas as outras, Carlos!
– Esta é um bocadinho mais! Digo eu, que não percebo nada de nada. Mas sempre ouvi dizer que a preguiça é a mãe de todos os vícios e acrescentar que o único modo de a vencer é através da diligência. E aí temos nós mais um motivo para lhe estarmos agradecidos, porque o Tio Ambrósio tem sido para nós um exemplo de muitas e variadas virtudes, nomeadamente essa da diligência.
– Deixa-te de louvores fáceis, Carlos! Não sei se estás recordado do que disse Jesus aos discípulos, segundo o relato evangélico de São Lucas, creio que no capítulo 17. Para os advertir contra a possibilidade de se vangloriarem pelo facto de terem feito alguma obra boa, Ele apresenta-lhes uma parábola em jeito de pergunta. Até podes ler o texto, que eu quase sempre tenho a Bíblia ao dar da mão. Abre aí e lê, que é assim que se aprende…
– Ora cá está o capítulo 17 que …não estou bem a ver bem essa passagem!
– Procura, que encontrarás!
– É aqui, a partir do versículo 7. Vou ler: “Qual de vós, tendo um servo a lavrar ou a apascentar gado, lhe dirá quando ele regressar do campo: Vem cá depressa e senta-te à mesa? Não lhe dirá antes: Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires enquanto eu como e bebo; depois comerás e beberás tu? Deve estar grato ao servo por ter feito o que lhe mandou? Assim também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, fizemos o que devíamos fazer”.
– Que tal, Carlos?
– É bem claro, Tio Ambrósio! De qualquer modo não podemos concluir desta passagem evangélica que seja pecado demonstrar a nossa gratidão às pessoas que nos tenham feito bem durante a vida. Eu penso que a ingratidão é que é de censurar e mesmo de condenar…
– Eu entendo-te, Carlos! Mas prefiro sublinhar para mim que, mesmo depois de ter feito algumas boas obras e de ter tentado servir de bom exemplo sobretudo para os mais novos, devo continuar a considerar-me um servo inútil, pois não fiz nada mais do que aquilo que devia fazer. Eu não sou dono e senhor de nenhum dos dons com que sirvo a comunidade…
– A muita humildade também se pode converter num defeito, Tio Ambrósio!
– Pode! E já tenho meditado nesse assunto muitas vezes, chegando à conclusão que não devo arranjar motivos fáceis para deixar de cumprir a minha obrigação.
– Nesse caso, o melhor é não falarmos mais desse assunto, embora fosse um gosto para mim, e para outros rapazes do meu tempo, podermos dar-lhe um abraço demonstrativo da gratidão que todos lhe devemos…
– Para abraços, estou por aqui, Carlos! Para palavras de lisonja, que me cheiram sempre a oco, para essas é que não.
– Então, o melhor é arranjarmos um abraço colectivo! Não sabemos é qual seja a forma de lho fazer chegar!
– Quando vier o S. Martinho, se Deus Nosso Senhor ainda cá nos deixar andar, teremos ocasião de nos abraçar, Carlos! De pequenos e grandes, novos e velhos… de todos receberei com gosto o abraço da fraternidade que nos tem unido ao longo dos tempos…
– E vai continuar a unir, Tio Ambrósio!
– Assim o espero, por graça de Deus!
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