09/07/2017

À SOMBRA DO CASTANHEIRO (09-07-2017)

– Tornamos a ter aí um tempo de calor, que é de um homem suar em bica. Mas é o tempo dele. Não é, Carlos?
– Venho mesmo a transpirar por todos os poros, Tio Ambrósio! E, pelo caminho, vinha a pedir a Deus que nos livre de uma tragédia semelhante à que nos atingiu há três semanas atrás. Um dia destes, na companhia do meu cunhado Acácio, passei por algumas das localidades mais atingidas pelo incêndio, parando num dos pontos mais altos, de onde se pode observar aquela extensa zona de mata, que agora ficou integralmente reduzida a cinzas. Eu sei que o mais penoso foi a perda de sessenta e quatro vidas humanas. Mas essa dor que não passa é agravada pela mudança da paisagem que, de verde de várias tonalidades, passou ao luto do preto e da cinza. É um grande desconsolo para a alma, Tio Ambrósio!
– Eu vou ficar aqui no meu canto, não a recordar a vicejante paisagem, mas a chorar os que ali perderam a vida. Podem procurar todas as explicações para o sucedido e empurrar as culpas de uns para os outros, que isso pouco ou nada me importa. É certo que quase todos agora se mobilizam para cuidar dos vivos e dos seus haveres, e eu próprio, na medida das minhas posses, já dei para isso o meu pequeno contributo. Mas ninguém me pode levar a mal que eu continue a lamentar o que aconteceu aos que perderam a vida e a chorar lágrimas de sal por irmãos meus de sangue que nunca pensaram na vida que os esperaria um fim tão triste e tão trágico como este. Passados todos estes dias, quando me levanto, pela manhã, e dou graças a Deus por esta graça tão grande de me conservar a vida, não consigo evitar uma lágrima furtiva por aqueles que, numa noite fatídica, perderam o direito a realizar os seus sonhos. Tanto se me dá que a causa do sinistro tenha sido um fenómeno natural, como alguns continuam a defender, como tenha tido na sua génese uma maléfica intervenção criminosa. Se a primeira hipótese nos traz o consolo de pensarmos que do crime estão libertas as consciências humanas, nem uma nem outra nos apagam da memória a tragédia, o horror e possivelmente o desespero a que se viram sujeitos os nossos irmãos e irmãs que pereceram.
– Eu sei que vai demorar muito a passar o tempo de luto, não apenas para os familiares, como para todos os que viveram a tragédia por dentro, ou mesmo para aqueles que, como eu e como o meu cunhado Acácio, por ali passámos para nos inteirarmos da extensão da tragédia. Aquilo é pesado de mais, e o negrume é tanto, que não é possível, em meses ou mesmo em anos, passar-lhe uma esponja por cima e pensar que, com as pequenas medidas agora tomadas, a tragédia não voltará a acontecer. Tudo o que se tem feito apenas serve para aliviar as penas de algumas consciências…
– Não, Carlos! Eu sei que alguns dos habitantes dos lugares mais atingidos já tomaram e executaram a decisão de arrancar todos os eucaliptais que, entre outras circunstâncias, foram a causa, se não da origem, pelo menos da extensão deste horroroso sinistro.
– Eu penso que, infelizmente, esse apreciável propósito vai ser esquecido em poucos meses. Isto tanto por parte dos proprietários particulares, como do governo que, agora, numa operação plástica de última hora, veio afirmar que não haverá mais autorização para plantar um único eucalipto em Portugal. Olhe a grande novidade, Tio Ambrósio! Nem isso é preciso! Basta cortar os que agora arderam para rebentarem com mais força e serem multiplicados por três! Infelizmente, o que preocupa a maioria das pessoas é o lucro fácil e rápido! Se quer um exemplo, posso dizer-lhe que tenho um compadre que, até há bem pouco tempo, nas conversas que tínhamos quando nos encontrávamos na feira dos 23, era um defensor acérrimo do plantio de espécies menos inflamáveis, nomeadamente o castanheiro, o sobreiro, o carvalho e o plátano. Mas depois veio um vizinho, que tem estado emigrado, que resolveu deitar abaixo o pinhal, que já era bem nocivo, arrotear os terrenos e plantar um eucaliptal que, passados menos de dez anos, deu um corte de madeira para a celulose. Tudo bem pago, em dinheiro vivo. Perante isto, esse meu compadre nem pestanejou! Transformou os pinheiros em euros, que deram e sobraram para lavrar os pedregais e fazer a plantação de eucaliptos que, como ele me diz, vão ser o complemento da sua reforma…
– Infelizmente, somos muito curtos de vista, Carlos! Só sabemos planear o dia de hoje e, quando muito, o dia de amanhã. Deixámos de ter paciência para ver mais longe, para pensarmos no futuro daqueles que vêm atrás de nós.
– Esse meu compadre, quando eu lhe quis fazer ver uma série de coisas, até chegou a chamar-me burro, o que para mim não é nenhum insulto, pois simpatizo imenso com esse animal que, como vossemecê se lembra, tem sido meu companheiro nos meus sonhos de Natal. E um bom companheiro, diga-se em abono da verdade. Neste capítulo estou como o mestre Gil Vicente que, na Farsa de Inês Pereira, colocou na boca de uma das suas personagens aquela frase emblemática: “mais vale asno que me leve, do que cavalo que me derrube”.
– E que te disse esse teu compadre na feira dos 23?
– Que a vaca deve ser ordenhada enquanto o leite não secar! Isso de guardar para o dia de amanhã foi uma tolice inventada por uns velhotes que se armam em filósofos…
– Essa não é para mim, Carlos!
– Olhe que não sei, Tio Ambrósio! Vinda de onde veio, é bem possível que vossemecê seja um dos velhotes visados. Mas, se for, não se importe, porque para palavras loucas, orelhas moucas!
– Assim tenho eu feito sempre ao longo da minha vida. E espero que Deus continue a dar-me juízo e entendimento para me aguentar firme nesta posição que, se outro mérito não tivesse, é fundamental para eu me sentir em paz com a minha consciência.
– E já não é pouco, Tio Ambrósio!

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