– Eu confesso que ainda tive algumas esperanças que, depois da tragédia de Pedrógão, os incêndios diminuíssem em número e gravidade, pois ninguém pode ficar indiferente perante a morte de tantas pessoas e a desolação em que foi transformada uma paisagem verdejante que cobria aquelas montanhas. Mas logo fiquei desiludido com a notícia do deflagrar de outros fogos, um pouco por todo o país. A gente sabe que anda por aí mão de pirómanos, até porque agora há mesmo suspeitas que o grande incêndio terá tido origem criminosa.
– Eu não sei que te diga, Carlos. Perante estas calamidades que todos os anos nos enchem a alma de tristeza, fico de tal maneira angustiado que nem me atrevo a pensar qual tenha sido a origem dos sinistros. Mas penso que haverá um pouco de tudo. Por um lado, o descuido, por outro o da falta de limpeza da nossa floresta, e também pode haver quem ainda se atreva a lançar o lume, por doença psiquiátrica, por vingança ou mesmo por encomenda de alguém que seja mais amigo da cinza do que dos montes cobertos de verdura. Mas duma coisa não tenho dúvidas: as nossas matas são uma verdadeira desordem. Cada um planta o que quer onde lhe apetece, ou nem planta mas deixa crescer tudo o que aparece…
– Eu sei que nos custa muito, Tio Ambrósio! Mas devia haver um mínimo de regras, nomeadamente no que se refere aos terrenos envolventes das povoações. Até aqui no Cabeço é como vossemecê sabe. O Tio Ambrósio ao redor da sua casa só tem o castanheiro e árvores de fruto. Mas temos aí sítios onde a floresta está mesmo em cima das habitações. E não é só o pinhal com os medronheiros à mistura. Agora quase só se vêem eucaliptos que, como todos sabemos, são autêntica pólvora quando o lume chega por perto.
– Por isso, eu não podia estar mais de acordo com a tomada de medidas que preconizem um verdadeiro ordenamento do território, quer a nível de construção, quer em relação às espécies permitidas em cada concelho, ou mesmo em cada freguesia…
– Não é fácil, Tio Ambrósio! Todos concordam com o ordenamento, desde que isso não lhes acarrete qualquer despesa e que, pelo contrário, lhes possa dar algum lucro. Vossemecê ainda se lembra dos nossos pinhais todos resinados, o que constituía, para muitas famílias, a principal fonte de receita. Aquilo era muito mais do que é hoje o rendimento mínimo…
– Eu penso que temos que recuar mais um pouco no tempo e voltar a plantar sobreiros, castanheiros, carvalhos ou cedros.
– Voltamos ao mesmo, Tio Ambrósio! Essas espécies demoram uma eternidade a crescer e, por isso, não dão qualquer lucro aos seus proprietários…
– Não dão a estes, mas dão aos seus herdeiros! E eu acho que é próprio de uma mentalidade tacanha estar a perspectivar o futuro tendo como horizonte apenas duas ou três dezenas de anos. Este castanheiro que aqui vês, e que dá as mais saborosas castanhas do Cabeço e arredores, deve ter para cima de trezentos anos. Ora, se o meu tetravô tivesse a mentalidade mesquinha dos proprietários de agora, não teria aqui plantado esta árvore, que hoje pode ser considerada um verdadeiro monumento de interesse público.
– Eu diria mesmo que se trata de um autêntico monumento nacional! Um dia destes vai-lhe aparecer aí uma empresa qualquer a propor um negócio da China.
– Como assim?
– É fácil Tio Ambrósio! A empresa faz a publicidade a troco de metade do lucro, e arranja para aí umas visitas turísticas, tudo a pagar! Ou seja, a empresa, em seu nome, vai cobrar um tanto por cada visitante e ainda um suplemento a quem quiser fotografar esta espécie de interesse turístico para o Cabeço…
– Não estou nada interessado nessas jogadas que metam dinheiros, impostos…
– E guias turísticos credenciados! Quem sabe se não vão mesmo propor-lhe uma sociedade, de tal modo que o Tio Ambrósio ainda venha a ser considerado um grande empresário do ramo turístico…
– Não! Que eu não caio nessa, Carlos! Lá juntar as pessoas do Cabeço e das terras vizinhas, e oferecer a todos um abundante magusto, isso sim! Já o vimos fazendo há mais de uma dúzia de anos! E prometo que castanhas não vão faltar.
– Olhe que se vierem todos com fome de lobo…
– Nem assim, Carlos! É que eu não tenho apenas este castanheiro! Aí, pela encosta acima, há mais uma dúzia deles que, não tendo este porte altaneiro, ainda se vão fazer, Carlos! Se este, como acontece a todos os seres vivos, vier a sucumbir a uma qualquer doença, o que não me parece muito provável nestes cem anos mais próximos, já não ficamos sem castanhas. Há aí castanheiros que foram plantados pelo meu avô, outros pelo meu pai e, para que fique registado, outros foram plantados e enxertados por mim. É assim que eu entendo as coisas. Os nossos antepassados trabalharam para nós, e nós temos que trabalhar pensando não apenas no benefício actual, mas no legado que deixamos aos nossos vindouros. Tu sabes quantos anos tem a nossa igreja paroquial?
– Penso que é dos princípios do século dezoito…
– Mais ou menos do tempo deste majestoso castanheiro, Carlos! Toda construída em pedra, está aí para durar mais uns centos de anos. E os nossos avós que a ergueram não nos deixaram cá nenhuma factura para nós pagarmos. O mesmo se passa com o meu pequeno souto que, tal como fazemos com a manutenção da igreja, eu também tenho preservado, plantando novas árvores.
– Deveria ser esse o espírito de todos os proprietários. Mas, infelizmente, não é assim! Ninguém pensa no futuro e, se alguém vier atrás de nós, que trabalhe!
– Tem que haver uma mudança de mentalidade, Carlos! Os homens de hoje não são capazes de olhar para além da fronteira limitada da sua esperança de vida. Calculam um período de permanência neste vale de lágrimas, e exploram até ao tutano as potencialidades das suas propriedades, pensando apenas na sua pessoa, no lucro imediato. O que reina é o puro egoísmo económico!
– E não tenha grandes esperanças que isto mude, Tio Ambrósio! Estou quase como Jesus que dizia ser mais fácil fazer passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que mudar a mentalidade dos que só pensam em riquezas.
– E Jesus conhecia como ninguém o coração humano! Mas eu não vou ainda perder a esperança, Carlos!
Sem comentários:
Enviar um comentário