– Como vão as coisas pelo Cabeço, Carlos? Parece-me que te vejo um pouco abatido e acabrunhado! Certamente terás razões para isso…
– Para isso e muito mais, Tio Ambrósio! A vida, numa aldeia como a nossa é feita de alegrias e tristezas. Por vezes, mais de tristezas do que de alegrias. É só repararmos em tudo o que tem acontecido nestes últimos tempos. A tristeza foi tamanha que, este ano, até suspendemos a celebração das festas populares do São João e do São Pedro. Eles que nos perdoem, se estavam à espera de fogueiras e de cantigas, mas, perante a catástrofe dos incêndios nos vizinhos concelhos de Pedrógão, da Castanheira, de Figueiró, de Góis e da Pampilhosa não nos puxa o corpo para a folia…
– Temos grandes razões para mostrarmos a nossa imensa tristeza, Carlos! Bastaria que se tivesse perdido apenas uma vida humana para termos a nossa alma a chorar! Mas foram sessenta e quatro pessoas que pereceram nesse incêndio monstruoso, o que nos veio deixar no mais profundo silêncio e na mais pesada amargura. Eu ainda hoje não consegui acordar bem para a realidade, parecendo-me que um drama destes só pode ter sido mentira…
– Era bom que tivesse sido apenas um sonho mau, um pesadelo, daqueles que nos fazem acordar a meio da noite. Mas não, Tio Ambrósio! A foice vermelha, desta vez ceifou mesmo sessenta e quatro vidas humanas.
– E a quem devemos assacar as culpas para tal tragédia, Carlos?
– Se calhar isso nem é o mais importante, Tio Ambrósio! Já tenho ouvido e visto os mais diversos comentários acusatórios, apontando o dedo à incúria desta ou daquela entidade, mas isso agora não vem remediar nada. As vidas humanas que se perderam são sagradas, são demasiado importantes para agora andarmos a pretender saber se a causa esteve neste descuido ou na incompetência dos que deviam ser responsáveis. Nada disso vai fazer regressar a esta vida aqueles que a perderam de modo tão trágico.
– Temos que acautelar o futuro, Carlos! Este desastre tem que servir de lição a todos nós para que não venha a repetir-se nunca mais! No meu entender, há alguns mais culpados que outros. Mas, no fundo, todos temos a nossa quota-parte de responsabilidade. Todos nós fazemos asneiras enormes em relação ao ambiente. Como vês, eu aqui em volta da minha casa tenho tudo mais ou menos limpo, pois roço as silvas duas ou três vezes por ano. Mas isto são apenas dois palmos de terra. Por isso, eu entendo que é muito difícil a quem tenha terrenos maiores, aqui no meio das montanhas, fazer o que eu faço no meu bocadinho. E depois acontece que a maioria das pessoas já nem vive aqui nas nossas aldeias. Foram procurar lugares onde tenham melhores meios de vida…
– Tudo isso é verdade, Tio Ambrósio! O Cabeço, nestes últimos trinta anos, perdeu mais de metade da sua população. E há aldeias em piores circunstâncias do que a nossa. Onde estão os rebanhos que, antigamente, espontavam as carquejas e não deixavam crescer a erva nos montes? Onde estão as terras agricultadas com estrume que se fazia a partir do mato torgueiro ou mesmo do tojo, da magorice e da queiró? Onde estão os batatais que, depois de semeados, eram cobertos por uma carrada de caruma que se espalhava antes da primeira rega? Onde estão os ranchos de rapazes e raparigas que, por esta altura do ano, iam buscar sacos e sacos de pinhas para acender o lume no inverno?
– Tudo isso lá vai, Carlos! E hoje o que temos são matagais enormes, onde ninguém é capaz de penetrar, até porque se deixaram perder os caminhos e os carreiros. A maioria dos chamados proprietários nem sabe onde estão os marcos que dividem as suas testadas com as dos vizinhos.
– Então há muito que mudar para termos maior segurança, Tio Ambrósio! E não basta, no meu entender, fazerem-se novas leis de carácter repressivo…
– Deixemos essa discussão para outra altura, Carlos! Tu disseste-me que a vida numa aldeia é feita de tristezas e também de alegrias. Esta foi uma grande e amarga tristeza. E também houve alguma alegria?
– Podemos dizer que sim, Tio Ambrósio! Pelo menos para nós, os crentes! Aquela ordenação de dois novos padres e quase dúzia e meia de diáconos permanentes, no passado Domingo, em Coimbra, não deixa de ser uma boa notícia, que se deve registar, até porque alguns dos novos ministros sagrados são nossos conhecidos dos cursos de catequese de adultos e de outras actividades ligadas à vida da Igreja.
– Tu foste lá participar nessa cerimónia?
– Por acaso não fui. Mas o Liberato foi lá, e contou-me que tinha sido um ritual que lhe encheu as medidas, porque a Sé Nova estava à pinha, e via-se no rosto dos fiéis a alegria de verem aquele grupo de homens bons e de comprovada virtude a serem ordenados para o serviço da Igreja Diocesana. Quando estamos tão carecidos de gente que se entregue, de alma e coração, ao serviço do Evangelho, é para darmos graças a Deus por estes dons que nos vai concedendo…
– Eu também fico muito feliz com esse acontecimento, e até tenho pena de não saber da ida do Liberato, porque lhe teria pedido para me levar. Gosto de ver esses acontecimentos com os meus próprios olhos…
– Quem vai a Coimbra nestes próximos dias é o meu cunhado Acácio! Eu penso que ele até já foi ontem e vai hoje e amanhã, porque a Ermelinda é muito devota da Rainha Santa e costuma sempre participar no tríduo de preparação para a festa, que é depois de amanhã. Se quiser, pode aproveitar…
– Ao tríduo já me custa bastante, Carlos! É à noite e a vista já não me ajuda. Mas ainda vou pensar nisso e, pelo menos na Missa da festa, espero estar em condições de participar, até porque é feriado em Coimbra. E que não fosse! Até tu podias ir também, porque eu vou muito bem com o Acácio. Mas estou mais habituado contigo…
– Está bem! Vou ver se arrumo a minha vida a tempo de o acompanhar…
– Quando um homem quer, tudo se faz!
– Eu depois digo-lhe alguma coisa, Tio Ambrósio!
– Fico a contar, Carlos!
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