– Graças a Deus Nosso Senhor, parece-me que não há nenhum habitante nem natural do Cabeço envolvido naquela barafunda política e económica a que resolveram dar o nome de “Operação Marquês”.
– Ninguém nos pode garantir uma coisa dessas, Carlos! Os envolvidos são tantos que nunca se sabe se algum dos nossos patrícios que trabalham em Lisboa, sem saber que estava a ser levado, tenha sido moço de recados de algum dos barões do capital. Temos, por exemplo, alguns rapazes descendentes cá da terra que desempenham o honroso ofício de taxistas. Por isso é possível que algum deles tenha transportado alguém que se dirigisse para esta ou aquela morada, levando consigo uma pasta cheia de cacau…
– Se isso aconteceu não é motivo para ser incriminado, Tio Ambrósio! O taxista sabia lá que aquele cavalheiro engravatado levava na pasta documentação comprometedora ou mesmo uns maços de notas de quinhentos, que são uma coisa que eu nunca vi! Vossemecê sabe o que é uma nota de quinhentos?
– Por cá há pouco disso. Penso que são mesmo muito raras! Mas um dos nossos emigrantes, em gozo de merecidas férias cá na terra, veio aqui visitar-me e perguntou-me se eu queria ver uma raridade. Eu até pensei que fosse algum objecto de colecção, uma medalha ou coisa assim, e acenei positivamente. E fiquei com os olhos arregalados quando ele me pôs na mão uma dessas notas que valem muito mais que a minha pequena pensão de velhice. Se eu fosse com uma coisa daquelas ao Sanguessuga para pagar um peixe de bacalhau e um quilo de arroz, o homem até ficava gago, e ficaria a pensar aonde é que eu tinha ido desencantar uma raridade daquelas.
– Estou mesmo a ver o Sanguessuga a pegar na cédula bancária e a dizer que o Tio Ambrósio tinha sido burlado por algum desses fulanos que andam por aí a enganar os mais velhotes, dizendo-lhes que é muito mais seguro ter as poupanças numa só nota de quinhentos do que num quarteirão delas de vinte…
– Anda por aí um ganau que é bem capaz de fazer dessas ou ainda piores, iludindo os idosos com notícias do género de as notitas que têm lá em casa estarem a passar de validade, e ser bom trocá-las por outras acabadinhas de sair da impressora, mas que não passam por vezes de cópias falsificadas.
– Numa dessas vai ser muito difícil fazerem-me cair, primeiro porque não tenho dinheiro para guardar, e depois porque ainda tenho dois dedos de tino para saber distinguir um vígaro dum homem de bem…
– Isso dizem todos, Tio Ambrósio! Mas vossemecê sabe que esses fulanos têm uma lábia capaz de fazer mudar de ideias o mais sábio e sério dos velhotes…
– Já me apareceram aí, Carlos! E dessa vez tive sorte porque, entretanto, quando eles estavam a meio do paleio ludibriador, chegou o teu cunhado Acácio, que vinha para me mostrar mais umas fotografias que ele tinha feito naquela viagem aos países do norte. E os fulanos arranjaram uma desculpa esfarrapada e viraram as costas…
– Como está a ver, é preciso ter sempre muita cautela!
– Mas o emigrante da nota de quinhentos conheço-o eu desde que ele andava de calções! Vinha mesmo para me cumprimentar e fazer-me ver que, felizmente, a vida lhe está a correr bem na Alemanha, onde trabalha há mais de vinte e cinco anos. É filho do Tio Manel Ferrador. Não sei se te lembras dele…
– Lembro-me muito bem do pai e do filho, que é um rapaz do meu tempo, que se chama Hermínio e que casou com uma rapariga de Chancas de Baixo, a Adosinda. Há quantos anos não vejo esse fulano, de quem sou amigo, até porque nos encontrámos na vida militar…
– Pois foi ele que me mostrou a quinhentola, e me disse, certamente para me exibir a sua abastança, que lá é comum usar dinheiro deste nos mais diversos pagamentos…
– Gabarolices, Tio Ambrósio! Mas eu nem lhe levo a mal! Nem a ele nem aos outros nossos patrícios que se vêem obrigados a sair da sua terra para ganharem o sustento para si e para os familiares. De resto, isto vinha a propósito, não dos salários dos nossos emigrantes, que, muitas vezes são bastante mais elevados que os nossos, mas dos desvios de uma gatunagem que se instalou em Portugal nestes últimos anos…
– Verdadeiros crimes de colarinho branco…
– O Liberato diz que são roubos de luvas brancas…
– Para sermos verdadeiros, eles nem precisam nem de colarinhos nem de luvas! Hoje, segundo me dizem, basta um computador e, em poucos minutos, fazem-se transferências de autênticas fortunas para os tais paraísos fiscais. O trabalho é feito por profissionais, de modo a não deixar rasto.
– Não é bem assim, Tio Ambrósio! O que eles conseguem é armar uma teia tal que a justiça encontra sempre algum empecilho, de modo a prolongar indefinidamente os processos, muitas vezes até caírem no rol do esquecimento. Mas o nosso povo, que é tudo menos burro, sabe bem que aquelas fortunas foram adquiridas com marosca, e que aqueles marmanjos se apoderaram de verdadeiras fortunas que pertenciam e pertencem ao povo. Aquilo nem precisava de juízes formados em direito nas nossas universidades! Qualquer indivíduo honesto, mesmo que tenha feito simplesmente a quarta classe, perante a desfaçatez de tais malabaristas, chega facilmente à conclusão que, quando estes negam os seus crimes económicos, estão a mentir com quantos dentes têm na boca.
– A lei permite que cada um se defenda com todas as armas que tiver ao seu alcance…
– Mesmo que seja a mentira descarada?
– Tu não és tão ingénuo que vás admitir que os acusados venham declarar em público que entraram em negócios ilícitos, com os quais deram grandes prejuízos ao país, levando mesmo algumas instituições economicamente saudáveis à bancarrota…
– Não vêm declarar, mas deviam vir, Tio Ambrósio! A não ser que eles tenham mandado a consciência às ortigas…
– Tu falas de consciência em malandros deste calibre, Carlos?
– Todo o ser humano pode errar, Tio Ambrósio! Mas, quando a sua consciência o leva a descobrir que errou, deve ter a humildade suficiente para pedir desculpa e, se ainda for possível, reparar os danos causados.
– Essa é doutrina para homens com H grande, Carlos! Mas estes de que estamos falando são seres humanos sem vergonha e sem carácter! Entendes?
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