26/11/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (26-11-2017)

– Louvado seja Deus! Pensei que já nem vinhas, Carlos!
– Boa tarde lhe dê Deus, Tio Ambrósio! Vejo que já se passou de armas e bagagens aqui para o calor da sua fogueira…
– Graças a Deus vieram os primeiros pingos de chuva e, depois das três, sopra aí uma aragem fria vinda do Norte. Daí que, apesar de me ter vacinado contra a gripe, o melhor é recolher-me cá para dentro, que o seguro morreu de velho. Mas tu vens aí como se ainda fosse Verão!
– A Joana já me aconselhou a trazer um agasalho. Mas desta vez ainda resisti, porque penso que este chuvisco vai ser de pouca dura. Infelizmente! Nós bem que precisávamos aí de duas ou três semanas de chuva, daquela miudinha, da que penetra lentamente na terra, que está sequiosa como quase não tenho lembrança.
– Nem eu me lembro duma seca assim, Carlos! Mas eu tenho confiança em Deus, e sei que Ele nos não vai deixar morrer à sede, embora todas estas alterações do clima sejam culpa dos homens, que não sabem respeitar a natureza.
– Possivelmente não poderemos culpar ninguém em especial, porque, nesta como em outras matérias, todos temos culpas no cartório…
– Uns mais que outros, Carlos! Se formos a analisar com alguma profundidade este problema, veremos que a raiz do mal começa na ganância de alguns que apenas pensam no dia de hoje, não tendo qualquer perspectiva de futuro. Há várias décadas que sábios avisados vêm chamando a atenção para os comportamentos que estão na origem destas nefastas alterações climáticas, mas os homens que estão à frente dos países mais industrializados e mais poderosos do mundo estão-se nas tintas para a resolução do problema. Vozes sensatas alertam para a necessidade de conservar as florestas, que são o pulmão do planeta que habitamos, pois sem elas não teremos o oxigénio necessário à vida, e o que vemos é a destruição das matas, quer através dos incêndios que tudo reduzem a cinzas, quer com o abate de árvores centenárias para comercializar as madeiras.
– O objectivo final é sempre o lucro, Tio Ambrósio!
– Eu digo que sim, Carlos! E quando se trata de obter lucros a qualquer preço, o homem passa por cima de todas as regras, pensando apenas no imediato, nem pensando que, com atitudes destas, estão a hipotecar o futuro dos filhos e dos netos…
– A natureza tem uma capacidade imensa de se regenerar, Tio Ambrósio! Mas penso que, neste capítulo, o homem já foi longe demais e que, nem que agora comece a arrepiar caminho, serão necessárias centenas de anos para que se volte ao equilíbrio inicial.
– Mas, olhando para a cena internacional, não vislumbro que os governantes dos povos estejam com intenção de resolver esta situação, que pode vir a desembocar na destruição total da nossa casa comum. Eu, devido à minha idade, já cá não estarei para ver as condições cada vez difíceis para a humanidade em geral, e para alguns povos em particular. Este problema da falta de água, que nós começamos a sentir nalgumas regiões do nosso país, arrasta consigo muitos outros que levam ao empobrecimento das famílias e dos cidadãos. Todos nós, que temos contacto com a terra e dela tiramos o fruto do nosso sustento, sabemos que sem água não há vida…
– E não há, Tio Ambrósio! De que nos vale termos as terras para semear se não tivermos água para regar as plantas? Eu sempre ouvi dizer que a água é o sangue da terra! Repare que, neste ano de seca grave, o seu castanheiro deu fruto saboroso. Mas o calibre da castanha foi muito mais pequeno do que em anos em que as chuvas vieram no seu devido tempo.
– Sem chuva e sem calor, nada se cria, Carlos!
– Água e calor na justa medida, Tio Ambrósio! Porque eu temo bem que, devido aos fogos que devastaram a nossa região, nos próximos anos a caloreira seja tal que não deixe germinar as sementes…
– Não vamos entrar num cenário tão catastrófico, Carlos! Mas não pensemos que tudo vai continuar a ser como dantes! A natureza tem as suas leis, e muitas vezes desculpa os nossos desvarios, mas lá vai chegar a altura em que reclamará para si os seus direitos.
– Seja como for, eu daqui a uns dias vou semear dois ou três regos de favas. Se vir que não nascem, repetirei a sementeira em Janeiro, porque, como diz o nosso povo, em Maio há sempre favas.
– Cá! Porque noutras latitudes ou não há favas, ou chegam mais cedo ou mais tarde! O teu cunhado Acácio, quando, na companhia da Ermelinda, fez a sua viagem aos países do Norte, tirou fotografias, que aqui me mostrou, a um canteiro de favas que ainda estavam em flor. E isto em pleno mês de Julho…
– Já não teriam tempo para dar grande fruto. Mas não há como experimentar! Assim como quem não quer a coisa, e para não passar por tolinho, vou semear, às escondidas, uma mão cheia delas em Abril ou Maio. Quem sabe se, em Setembro, no tempo das vindimas, não me poderei regalar com favas com entrecosto e um ovo escalfado?
– Seria bom que todos os pobres tivessem uma refeição dessas, pelo menos de vez em quando, Carlos! E, a propósito disso, no passado domingo, encontraste muitos casos de pobreza extrema cá na nossa freguesia?
– Da pobreza relacionada com a falta de alimento, não, graças a Deus! Mas o homem não tem fome e sede apenas de pão, Tio Ambrósio! Encontrámos alguns idosos a viverem sozinhos, num isolamento que não deve ser nada saudável. Demos conta destes casos ao nosso Presidente da Junta que, em ligação com o grupo paroquial de acção caritativa, vai envidar todos os esforços para que estas pessoas possam passar, pelo menos parte do dia, com outras pessoas no nosso pequeno centro social. E o Tio Ambrósio também podia passar por lá, de vez em quando, para conversar e até para merendar com aqueles jovens quase do seu tempo…
– São quase todos mais novos do que eu, Carlos! Mas os problemas e as agruras da vida deixaram em muitos marcas mais profundas que os próprios anos. De qualquer modo vou aceitar a tua sugestão, até porque também vai ser proveitoso para mim essa mudança de ares! Vai lá com Deus, Carlos!
– Até domingo, Tio Ambrósio!

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