05/11/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (05-11-2017)

– Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
– Para sempre seja louvado e sua Mãe Maria Santíssima! Vens hoje muito piedoso, Carlos! Há muito tempo que não recebia uma saudação matinal das que antigamente todos usávamos no nosso contacto diário.
– Bons costumes que se foram perdendo, Tio Ambrósio! Mas estamos sempre a tempo de os retomar! E eu penso que tudo vai com o hábito! No que à minha família diz respeito, eu sempre tenho ensinado os meus pequenos a dizerem: “bons dias nos dê Deus!”. Por vezes esquecem-se, e sei que, na escola, não é essa a linguagem oficial. Por isso, quando a mais pequena, que é a sua preferida, me veio dizer que ia deixar de se dirigir assim às colegas, eu disse-lhe que compreendia perfeitamente a sua posição. Mas fui-lhe adiantando que, em casa, me daria um gosto enorme se se habituasse a este modo de saudar os pais e os irmãos.
– Vai insistindo, Carlos! Dizem que o ser humano é um animal de hábitos, e que tanto pode aprender os bons como os maus…
– Tenho a impressão que os hábitos maus, nomeadamente no campo da linguagem, são muito mais fáceis de adquirir, Tio Ambrósio! O Sanguessuga, que está habituado, na sua loja de secos e molhados, a ouvir de tudo um pouco, embora, quando começa a ser demais, costume chamar à atenção os clientes que já beberam um copito que, se querem dizer asneiras, sabem muito bem onde é a porta de saída… O Sanguessuga, dizia eu, um dia destes foi a Coimbra e vinha de lá escandalizado com os rapazes e as raparigas que estudam na Universidade, e que vão ser os médicos, os advogados e os dirigentes políticos de amanhã.
– A rapaziada está habituada ao calão!
– O Sanguessuga garantiu-me que nunca, nem mesmo quando andou na tropa, tinha ouvido tantos palavrões juntos como os utilizados por um grupo misto de rapazes e raparigas que, pelo seu modo de trajar, devem frequentar a Universidade. Nem os carroceiros de antigamente falavam de modo tão grosseiro!
– Eu escandalizado não fiquei, Carlos! Mas senti-me triste quando um jornal transcreveu, um dia destes, uma escuta telefónica entre dois políticos que desgovernaram o país durante alguns anos.  A linguagem era da mais baixa que se possa imaginar. Tão degradante como aquilo só a conversa entre dois pedreiros que andaram aqui ao lado a fazer uma obra para o Alberto Constantino, e que, em cada três palavras utilizadas, duas pelo menos eram asneiras daquelas de fazer corar o Bocage.
– São os tempos em que vivemos, Tio Ambrósio! E eu, quando oiço, vou-me calando porque também não sou perfeito. Mas o Tio Ambrósio pode falar, porque nestes anos todos não ouvi da sua boca uma única expressão que uma criança não pudesse escutar.
– Também não sou perfeito, Carlos! Mas, se me vem a tentação, nomeadamente quando me enervo, depois procuro corrigir-me…
– Eu nunca vi o Tio Ambrósio enervado!
– Quem te escutar há-de pensar que basta lavarem-me os pés e colocarem-me no altar! Mas, infelizmente, não é assim! É verdade que já dei alguns passos importantes, como seja o de perdoar todas as injúrias que queiram lançar-me. No entanto, quando me ponho na presença de Deus, sinto-me como o profeta Isaías que, em circunstâncias semelhantes dizia: “Ai de mim, estou perdido, porque sou um homem de lábios impuros, que habita no meio de um povo de lábios impuros”.
– Nesse caso, que direi eu, Tio Ambrósio?
– Só quem não faz um bom exame de consciência é que não descobre que tem defeitos suficientes para não ter coragem de atirar pedras aos vizinhos. Mas quem descobre a sua indignidade e a sua pequenez, penso que está no bom caminho para se tornar melhor!
– A propósito, Tio Ambrósio! Veio-me agora à ideia de lhe perguntar se acha que os nossos políticos, eles e elas, são pessoas capazes de botarem a mão na consciência e perguntarem-se a si próprios se o seu procedimento é o mais correcto e o que melhor serve o povo que neles depositou a sua confiança.
– Tu fazes-me cada pergunta, Carlos! Sei lá! Eu vejo a cada passo ministros e deputados a afirmarem que nada lhes pesa na consciência. Quem sou eu para desdizer as suas afirmações?
– Não é preciso o Tio Ambrósio desdizer! Basta ouvirmos o que dizem e depois olharmos para os factos. Os factos é que desdizem as mentiras com que eles vão enganando o povo! O Sanguessuga até costuma afirmar que todo o político é um mentiroso encartado! E mais! Nós somos tão simplórios que ainda lhes pagamos para eles nos aldrabarem a torto e a direito…
– Não os podemos medir a todos pela mesma bitola, Carlos!
– Esse reparo fiz eu ao Sanguessuga!
– E ele?
– Sem pestanejar, corrigiu, dizendo que, com raríssimas e duvidosas excepções, todo o político é um mentiroso compulsivo!
– O Sanguessuga lá sabe as razões que o levam a fazer uma afirmação desse género! E como estamos em tempos de liberdade democrática, quem é que pode pôr em causa a veracidade de tal afirmação?
– O Manuel das Chagas até queria tornar a sua afirmação mais abrangente, misturando no mesmo saco a mentira e a corrupção.
– Mas tu não deixaste…
– Procurei botar água na fervura, chutando para canto, e remetendo o caso para o tribunal do Povo que, como todos sabemos, vai estar reunido aqui na próxima semana para a nossa habitual castanhada.
– É verdade, Carlos! No domingo que vem, quero aqui todos os habitantes do Cabeço e das povoações vizinhas para participarem no magusto que tenho todo o gosto em oferecer…
– O Tio Ambrósio oferece as castanhas! E chega! Porque nós estamos a tratar das entradas e das bebidas! Apesar de terem ardido algumas videiras, por este ano não vamos sentir a falta de uma pinga de estalo, da colheita do nosso comum amigo Agostinho, que prometeu abrir nesse dia uma das cubas, para todos podermos fazer a prova da pomada que promete estar excelente.
– A ver vamos, Carlos! E até pode acontecer que o convívio sirva para amenizarmos as nossas opiniões, nomeadamente sobre os pobres dos políticos…
– Pobres, Tio Ambrósio? Diga essa ao Sanguessuga!
– E digo, Carlos! Entretanto, tu vai lá com Deus!
– Obrigado pelos seus conselhos, Tio Ambrósio! Que Deus lhe pague!

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