08/04/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (19-02-2017)

– O Tio Ambrósio, aqui há uns tempos, disse-me que lhe tinham oferecido uma espécie de agenda totalmente em branco, vindo a descobrir que se tratava de um excelente bloco de notas, onde iria apontando alguns pensamentos de livros que fosse lendo, ou mesmo os assuntos que gostaria que nos servissem de tema de conversa aqui ao calor da sua fogueira…
– Não o tenho utilizado muito, talvez por preguiça ou mesmo por um pouquinho de vaidade.
– Essa da vaidade não a entendo num homem que eu sempre tive como modelo de simplicidade, e mesmo de humildade…
– Os homens (e as mulheres, é claro!) nem sempre são por dentro aquilo que parecem por fora…
– Não é o seu caso, Tio Ambrósio! Se vossemecê me vai dizer que é um poço de vaidade e de orgulho, eu não sei se me aguento sem ter um ataque cardíaco…
– Ou um ataque de riso, Carlos! Tu não deves pensar que eu sou algum santo, aureolado de todas as virtudes e mais algumas. Sou um homem honesto, isso sim! Mas pecador e cheio de defeitos, de tal modo que se queres um modelo para a tua vida, o melhor é ires procurá-lo a outro sítio, que por aqui não te safas…
– Gosto desse seu jeito brincalhão, Tio Ambrósio! É sinal que está bem-disposto e que a saúde, graças a Deus, não lhe tem faltado…
– Sabe-o Deus, Carlos! Deus e o Seu servo doutor Secundino que, de vez em quando, me vai sossegando com aquela sua forma optimista de ver a vida e a pobreza das nossas realidades intestinas. Diz que isto é próprio da idade, e que não há razão para não pecar de vez em quando…
– Exagerar um bocadinho, está bem! Pecar é que não, Tio Ambrósio!
– É uma forma de dizer que, em matéria de alimentação, ainda posso cometer um ou outro abuso, mas sempre com as devidas cautelas. É o que eu vou tentando fazer, com pena em vos não poder acompanhar, a ti, ao teu cunhado Acácio, ao Sanguessuga e a todos os outros nossos amigos do Cabeço, por exemplo quando algum de vós se lembra de recordar e até recriar aqueles tempos em que cada família do Cabeço abatia, por esta altura do ano, um ou dois suínos que, depois de acondicionados na salgadeira, eram o governo de uma dona de casa para quase todo o ano…
– O Tio Ambrósio fala-me de cada coisa! Eu não lhe queria contar, Tio Ambrósio! Mas já que vossemecê está a ser tão franco comigo, tenho que lhe confessar que, no princípio deste mês, não resisti à tentação de participar numa coisa dessas. Eu só fui no dia seguinte à matança em casa de uns amigos, no Carapinhal. O Tio Ambrósio sabe aonde é, não sabe?
– Tenho vários amigos por essas bandas, Carlos! Do meu tempo já restam poucos! Mas ficaram os filhos e os netos que, sempre que me vêem, me fazem uma festa e me convidam para passar lá por casa, sobretudo nos anos em que vamos participar na Procissão dos Passos a Miranda, que fica mesmo ali ao lado. Mas, como te digo, eu já procuro livrar-me o mais que posso dessas situações, porque, como me asseverava um senhor Padre que eu conheci muito bem, e que era verdadeiramente um sábio…
– O senhor Padre Nogueira…
– Estás em boa forma para a adivinhação, Carlos! Pois dizia-me esse ilustre clérigo e professor, que só tinha mais uns vinte ou trinta anitos do que eu… dizia-me ele que estômago de velho quer pouca carne.
– Os conselhos dos velhos são verdadeiros tesouros! Quase sempre valem mais que muitas teorias dos novos, Tio Ambrósio! – E por isso eu vou tentando equilibrar essa sabedoria só de experiências feita com a nesga de abertura que o doutor Secundino me concede, com muita benevolência, até porque sabe que eu consigo manter aquele equilíbrio que me permite conviver em todas as situações.
– E com esta conversa toda, não me chegou a dizer se, no seu pequeno caderno de apontamentos, tinha algum assunto para nós falarmos…
– Falamos da vida, Carlos! Tu, se calhar, querias que nós malhássemos em alguns políticos, sobretudo nesses que insistem em levar ao Parlamento assuntos fracturantes da sociedade, como é o caso da legalização da eutanásia, a que eles agora, para não nos ferirem tanto os ouvidos, deram o nome pomposo, mas sempre aviltante, de “morte assistida”.
– É uma das preocupações que me têm acompanhado nestes últimos dias, Tio Ambrósio! Eu sei que é uma obra de misericórdia assistir os doentes, e prestar-lhes todos os cuidados possíveis, mesmo durante a última fase da sua vida. Ou seja: eu sou partidário de “doentes bem assistidos”, mas rejeito declaradamente qualquer forma de “morte assistida”. Como afirma o nosso amigo Liberato, numa frase o sujeito é sempre muito importante. E, na primeira frase, que é a que eu defendo, o sujeito é o doente, é a pessoa humana que, depois de Deus, deve ter sempre em tudo o primeiro lugar. Na outra frase o sujeito é a palavra morte. Trata-se de uma realidade que não podemos ignorar, mas que nos causa calafrios. Agora que, por causa da catequese de adultos, eu leio com mais assiduidade a Sagrada Escritura, não esqueço o texto da primeira carta de S. Paulo aos Coríntios, creio que no capítulo quinze, em que diz que Cristo há de entregar a Deus Pai o Reino restaurado. E acrescenta textualmente que “ é necessário que Ele reine, até que haja posto todos os inimigos debaixo de Seus pés. E o último inimigo a ser destruído será a morte”. Ora, se Cristo veio para destruir a morte, como é que alguém que tenha escutado a Sua Palavra, pode falar de morte assistida?
– Assistida, não, Carlos! Provocada! Eu aprendi, quando era criança, e sempre tenho repetido ao longo da minha já longa carreira, que o homicídio voluntário é um dos pecados mais graves, incluído no elenco daqueles que “bradam aos céus”. Não é agora, por mais que me doirem a pílula, que eu vou mudar de opinião. Sempre fui, sou agora e sempre serei um defensor da vida humana. Basta-me aquela palavra do Deus da Aliança que, no código gravado na consciência de todo o ser humano, incluiu o mandamento “não matarás”!
– Para quem acredita na presença de Deus não são precisas mais razões, Tio Ambrósio!

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