14/05/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (14-05-2017)

– Estamos mesmo de partida, Tio Ambrósio! Mas como, no domingo devemos vir cansados que baste, pois a vigília vai ser longa e exigente, eu resolvi dar ainda aqui um salto para lhe dar um abraço que compense a minha possível ausência de domingo. O Tio Ambrósio não leva a mal, pois não?
– Levo agora, Carlos! A tua companhia é-me sempre grata, seja a que horas for, e todos os motivos são bons para vires dar dois dedos de conversa com este teu velho amigo. É verdade que eu passo uma boa parte do meu tempo por aqui sozinho, meditando na vida e falando comigo mesmo, e não tenho grande dificuldade em viver um pouco afastado da multidão. Mas não sou propriamente um anacoreta daqueles do século quarto que procuravam a solidão do deserto como forma de se aperfeiçoarem na vida espiritual…
– Era aquilo a que eles chamavam de “fuga do mundo”! Não era, Tio Ambrósio?
– Nem todos iam para o deserto pelos mesmos motivos, Carlos! Alguns refugiavam-se nos montes e nas grutas para fugirem à justiça, ou porque tinham cometido algum crime de sangue, ou porque deviam avultadas contas de dinheiro…
– Como os tempos mudaram, Tio Ambrósio! Hoje em dia, muitos dos que se abotoaram com somas astronómicas, deixando mesmo as instituições bancárias na falência, não se refugiam em nenhuma montanha inacessível, com medo ou com vergonha dos crimes que cometeram. Muito pelo contrário, instalam-se em mansões de luxo, e continuam a fazer uma vida faustosa, como se não houvesse nenhum motivo grave a perturbar-lhes a consciência!
– A ti está a puxar-te a língua para a crítica social, Carlos! Tem calma, rapaz! Afinal tu vais fazer uma peregrinação a Fátima, e é bom que aproveites a ocasião mais para reflectires sobre a necessidade que este mundo tem de perdão, do que os malandros têm de condenação. Não te esqueças daquela conversa que Jesus teve com Nicodemos, em que lhe afirmou que “Deus não enviou o Seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para este ser salvo por seu intermédio”.
– Eu sei, Tio Ambrósio! Mas tenho muita dificuldade em aceitar algumas verdades evangélicas. Será que pode haver perdão sem arrependimento?
– É uma pergunta honesta e inteligente, Carlos! Mas eu hoje estou mais inclinado em associar o perdão à misericórdia…
– E se acontecerem as três coisas ao mesmo tempo. Ou seja, o perdão ser fruto, por um lado do arrependimento, e, por outro, da misericórdia. Teríamos assim um perdão mais perfeito ou, pelo menos, mais compreensível.
– Entendo a tua posição, Carlos! Só que, ao contrário do arrependimento, que nem sempre existe, a misericórdia de Deus é infinita. De tal modo que S. Paulo chega a afirmar que “onde abundou o pecado, superabundou a graça” misericordiosa do Pai que perdoa sempre.
– Eu penso que nós havemos de um dia ter uma conversa mais a preceito sobre este assunto, pedindo mesmo a opinião ao Liberato, ao senhor Padre Feliciano, ou mesmo a um senhor Padre de Coimbra que é especialista em teologia moral. Que lhe parece?
– Havemos de aprazar o encontro, Carlos! Mas eu, por mais razões que me dêem, não sou capaz de pôr em dúvida, um momento sequer, a gratuidade e a infinitude da misericórdia de Deus para connosco.
– O Tio Ambrósio, com essa sua tendência, para a solidão, vai ter tempo para fazer uma reflexão profunda sobre esse assunto. E até aproveito para lhe pedir que, depois, nos vá fazer uma sessão da nossa catequese de adultos sobre esse tema tão importante na vida do nosso tempo…
– O perdão, o arrependimento, a penitência e assuntos afins não são um exclusivo dos dias de hoje, Carlos! Desde que o homem se deixou cair na tentação do orgulho, sempre houve necessidade de recorrer à misericórdia divina…
– E sempre houve necessidade de arrependimento para se obter essa misericórdia. Eu penso, com o Liberato, que arrependimento e misericórdia andam sempre juntos…
– Não sei se o Liberato faria uma afirmação dessas sem se sentir obrigado a dar algumas explicações, porque a dimensão do arrependimento e da misericórdia se apresentam com dimensões incomensuravelmente diferentes. O arrependimento é um sentimento humano e, por isso, muito limitado. Ao passo que a misericórdia é um atributo de Deus e, por isso, nunca se esgota, porque é impossível imaginar que se esgote o Amor de Deus!
– O Tio Ambrósio está a levar o tema para além dos limites do meu pobre entendimento. Aceito que seja assim como vossemecê afirma, mas tenho que me resignar à minha pobreza intelectual. E penso que não é mal nenhum um cristão aceitar como verdade um princípio que não entende em toda a sua profundidade.
– Se entendêssemos todas coisas em profundidade não teríamos necessidade da fé, meu caro Carlos…
– Há quem fale da fé dos simples, Tio Ambrósio! Assim é a minha! Eu posso juntar-me àqueles discípulos que, depois de terem escutado, de olhos arregalados, um discurso do Mestre, lhe fizeram o pedido: “Senhor, aumenta a nossa fé”!
– E que respondeu Jesus a esse pedido?
– Parece-me que lhes disse que, se tivessem fé como um grão de mostarda, poderiam dizer a uma amoreira “arranca-te daqui e vai plantar-te no mar”… e ela havia de lhes obedecer! Obrigado por este bocadinho, Tio Ambrósio! Penso que, com esta nossa conversa, vou um pouco mais preparado para aceitar a fé simples e humilde da multidão de peregrinos que, nestes dias vai estar na Cova da Iria…
– Dos pequenos e humildes é que é o Reino dos Céus, Carlos. Por isso, se queres ser grande, faz-te pequeno como uma criança…
– Se calhar há verdades que as crianças entendem muito melhor que os adultos, Tio Ambrósio!
– Não duvides, Carlos! Vai lá com Deus, e observa bem o que se passa à tua volta. E não te esqueças que Jesus rezou assim: “Eu Te bendigo, ó Pai, porque escondeste estas verdades aos sábios e aos inteligentes, e as revelaste aos pequeninos …porque assim foi do Teu agrado”
– Vou pensar seriamente nisso, Tio Ambrósio!
– Adeus, Carlos! E não te esqueças do meu recado para a Mãe! Ela sabe o que é!

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