04/06/2017

À SOMBRA DO CASTANHEIRO (04-06-2017)

– Eu estou a ficar muito desiludido com a humanidade, Tio Ambrósio!
– Eu não, Carlos!
– Até parece mentira, Tio Ambrósio! Vossemecê que é tão crítico em relação a determinados comportamentos…
– Mas isso não é estar desiludido seja com quem for, Carlos! Só pode ficar desiludido quem alguma vez se deixou iludir. E, em matéria coração humano, estamos conversados. Claro que há honrosas excepções! Tu, por exemplo, tens um coração de oiro, que eu bem te conheço, e até escusas de começar aí com falsas modéstias. Mas, se falarmos do ser humano em geral, verificamos que fica muito aquém do que nós esperávamos. Como refere o evangelista Marcos, creio que no capítulo 17, Jesus afirmou a todos os que o quiseram ouvir que “é do coração do homem que procedem os maus pensamentos, adultérios, imoralidades, roubos, falsos testemunhos, calúnias e blasfémias”.
– Eu fico admirado como essa palavra de Cristo é inteiramente actual nos nossos dias e na nossa sociedade, Tio Ambrósio! Abre a gente as páginas de qualquer jornal…
– Vê lá o que dizes! Não ponhas tudo no mesmo saco, porque há jornais, como é o caso do nosso “Amigo”, que não fazem grandes títulos com os desvios, as calúnias e outras misérias humanas que alguns fulanos já nem se importam que venham à luz do dia…
– Mas parece que esta é a verdade, Tio Ambrósio! Os nossos jornais continuam cheios de notícias de crimes de toda a espécie, de tal forma que a gente começa a temer pela própria segurança e até pelo seu bom nome. Deixou de haver qualquer tipo de moralidade, tudo servindo para alguns pretenderem passar por aquilo que não são, encobrindo crimes vários, nomeadamente de natureza económica. Agora, para desculpa da própria actividade marginal à lei, lançam-se suspeitas sobre tudo e sobre todos…
– É uma das formas de desviar atenções, Carlos! Para o povo não ver a gravidade de alguns roubos e desvios de lesa-património, atira-se um punhado de poeira para os olhos dos outros e, enquanto a gente esfrega e não esfrega, a traficância já prescreveu e o malfeitor fica a rir a bandeiras despregadas.
– E isso só acontece com um reduzido número de crimes, porque a maioria deles são praticados de modo a que nem a Justiça se apercebe de tudo o que aconteceu. Eu não quero exagerar, Tio Ambrósio! Mas, pelas contas do Sanguessuga, temos aí meninos que se abotoaram com centenas de milhões de euros que nunca lhe pertenceram, nem podiam ter pertencido…
– Há muitas formas de ganhar fortunas, Carlos!
– Mas eu estou a falar das formas ilícitas, Tio Ambrósio! Como diz o nosso povo, “quem cabritos vende e cabras não tem”…
– De algures lhe vem!
– E de onde lhes vem, Tio Ambrósio? Bens familiares? Não, que as famílias onde nasceram muitos deles o que poderiam possuir era um pedaço de terra ou um pequeno pé-de-meia ganho em alguns anos de emigração. O que acontece é que, na maioria absoluta dos casos, os incriminados se valeram de cargos que ocuparam durante algum tempo para urdirem verdadeiros esquemas de desvio de somas enormes, que depositaram em lugares seguros no estrangeiro. E, quando o caso se começa e deslindar, aparece um recurso para um tribunal superior, ou inventa-se uma outra manigância qualquer, chegando-se mesmo a lançar suspeitas sobre a idoneidade moral daqueles que têm a missão de julgar. Tudo serve para arrastar os processos por tempos infindos…
– Com essa leitura dos acontecimentos até parece que vivemos num país sem rei nem roque, numa espécie de paraíso inventado para os que exercem actividades de marginalidade económica, onde tudo é permitido…
– Eu não queria ser tão pessimista, Tio Ambrósio! E não estou a referir nenhum caso concreto, mas apenas a reagir a notícias vindas a público nos meios de comunicação social. De resto, eu sou tão humano (não é por acaso que vossemecê diz que eu tenho um coração de oiro) que nem desejava que nenhum dos suspeitos e incriminados fosse condenado à reclusão durante anos e anos. O que eu queria mesmo era que a Justiça tivesse meios de descobrir e poder reaver as importâncias que foram desviadas, roubadas ou extorquidas ao erário público, isto é ao povo português que, em última análise, é quem sempre paga as favas.
– Esse era também o meu desejo, Carlos! Até porque, mesmo que tivéssemos meios para esclarecer todas as traficâncias que se fizeram nestes últimos anos, mesmo que fossem identificados todos os responsáveis, estou em crer que não teríamos cadeias onde albergar tanta gente!
– Por isso mesmo é que eu penso que este problema não terá solução enquanto os desonestos não converterem o seu coração à honestidade e os mentirosos não arrepiarem caminho. Será possível?
– Possível seria, Carlos! Mas eu não estou a ver essa gente com grande inclinação para o arrependimento. E muito menos para a mudança de vida! O meu avô já dizia que os maus hábitos depressa se adquirem, mas tarde ou nunca se largam.
– Então está o Tio Ambrósio quase a chegar à mesma conclusão que eu, depois da conversa que tive com o Sanguessuga…
– Ou seja…
– Ou seja, que estou a ficar desiludido com a humanidade…
– Com parte da humanidade! A par de uns tantos vigaristas, há muitos seres humanos (e penso que é a maioria) que pautam a sua vida pela honestidade, que procuram cumprir os seus deveres de cidadãos, que têm como princípio sagrado não lesarem o próximo seja no que for…
– Será, Tio Ambrósio? Então porque é que os jornais e os noticiários televisivos só nos mostram crueldades, patifarias, roubos e assassínios?
– Porque querem vender o seu produto, Carlos! Como eu te disse, há por aí muita desgraça, muita mentira e muita corrupção. Mas eu, no fundo, mantenho a minha esperança na capacidade do homem para se regenerar. Estou convencido, lendo S. Paulo, que a graça de Deus acabará por triunfar, até porque não existe nenhum pecado maior que a misericórdia divina…
– Se o Tio Ambrósio o afirma, quem sou eu para duvidar?

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