– Estamos à sua espera, Tio Ambrósio!
– À minha espera? Mas eu não prometi nada, fosse a quem fosse!
– Ai aquele maroto do Sanguessuga que, mais uma vez, não cumpriu aquilo que nos prometeu! Veja que foi ele que se encarregou de avisar o Tio Ambrósio sobre a nossa ida à procissão dos Passos. Nestes últimos anos, por esta altura, sempre vamos todos cumprir esta devoção que, entre o nosso povo, se foi arreigando há dezenas ou mesmo centenas de anos. E vossemecê costuma ser dos primeiros a lembrar o pessoal…
– Não passo ano nenhum sem participar numa ou mesmo duas dessas piedosas devoções. Se queres que te diga, nem sei já quando é que fui a primeira vez. Tenho a impressão que terei ido ou ao colo da minha santa Mãe, que nunca faltava a este piedoso acto, ou pela mão de meu Pai, que também era um grande devoto de Nossa Senhora das Dores, e que todos os anos ia ou a Tentúgal, ou à Carapinheira, ou mesmo a Taveiro ou a Condeixa. Houve um ano em que me levou a Pedrógão Grande e, no seguinte, passámos mesmo o rio, e fomos a Pedrógão Pequeno, cuja procissão termina lá no alto de um monte, de onde se observa um soberbo panorama sobre o vale onde hoje está construída a Barragem do Cabril. Mas, quando era rapazote, onde eu mais gostava de ir era a Miranda do Corvo, onde os Passos se celebram só de dois em dois anos…
– Aí, este ano não há! Por isso, e para que o Tio Ambrósio não canse muito as pernas, resolvemos ir a um local mais plano, mas onde a devoção do povo é manifestamente evidente.
– Mas ainda é muito cedo para irmos a um acto religioso que, habitualmente, se realiza só da parte da tarde. Não conheço lugar nenhum onde as cerimónias tenham início antes das três horas…
– E desta vez creio que o início também rondará esse horário. Mas o Sanguessuga, que é quem este ano oferece o transporte, disse-nos logo que uma festa sem almoço não era festa completa…
– Eu não concordo, Carlos! Já me tenho deslocado muitos anos aos mais diversos lugares e até faço questão em, nesse dia, fazer jejum e abstinência, para melhor me integrar no espírito penitencial que estes actos devem ter. Tu já sabes bem que, para mim, uma procissão dos Passos, não é propriamente uma romaria folclórica. Eu quando participo nesses actos, participo mesmo a sério, procurando unir-me espiritualmente ao sofrimento de Cristo que, para remissão dos nossos pecados, suportou o peso da cruz e caiu várias vezes a caminho do Calvário…
– Eu sei, Tio Ambrósio! E o Sanguessuga mai-lo Acácio, que este ano são os nossos companheiros de viagem, também nutrem esses sentimentos religiosos. E vossemecê conhece-os bem e sabe que são daqueles que levam a sério as manifestações da nossa fé. Só que também não há mal nenhum em fazermos, nesse dia, uma refeição de amigos. Ou haverá?
– Não, Carlos! Mas sem se cometerem exageros, que não são nada convenientes nos dias em que devemos colocar o nosso espírito religioso acima de tudo o resto. Como diz a Sagrada Escritura, há um tempo para todas as coisas. Por exemplo, quando nós nos reunimos aqui pelo São Martinho, o nosso objectivo é o convívio e o são divertimento, sendo de louvar que um traga a sanfona, outro a viola e se arme aí um bailarico com cantigas ao desafio…
– O mesmo tem acontecido, e se irá repetir este ano por altura dos Santos Populares. E nós estamos bem conscientes dos nossos deveres e do testemunho que devemos dar em todas as circunstâncias. Mas não é pecado nenhum se, em vez de almoçarmos em nossas casas, formos fazer um repasto ligeiro a um pequeno restaurante de um conhecido e amigo de longa data do Sanguessuga. E, nesse caso, vossemecê não tem rebuço nenhum em nos acompanhar. Ou tem?
– Não, Carlos! Eu sei perfeitamente que todos vós sois companheiros excelentes e que não ides entrar em exageros que não sejam dignos de homens da nossa condição, e que não se integrem no espírito do acto penitencial que sempre deve estar presente na celebração de uma procissão do Senhor dos Passos.
– Estamos entendidos, Tio Ambrósio!
– Eu sei que nem era preciso estar a repetir-vos estas coisas. Mas, como as paredes têm ouvidos, sempre pode ser que estas considerações sejam escutadas por alguém que delas tenha necessidade…
– Está claro! Não é só a nós que o Tio Ambrósio dá esses avisados conselhos, mas a todos os que, por qualquer meio, chegarem ao conhecimento das suas sempre proveitosas considerações…
– E com toda esta conversa, ainda nem me disseste onde é que, este ano, vamos participar na procissão dos Passos e ouvir o sermão do Encontro, que é um dos quadros da Paixão que inspira maior piedade nos corações dos que querem reviver espiritualmente a caminhada de Jesus entre o Pretório de Pilatos e o cimo do Calvário onde foi crucificado e entregou ao Pai a sua Vida em resgate por todos os pecados de todos os seres humanos, de todos os tempos e de todos os lugares.
– Eu sei, Tio Ambrósio! A salvação de Cristo é universal. Não exclui absolutamente ninguém. Foi isso que nos explicou o nosso Padre Feliciano, quando nos falou, na última lição da catequese de adultos em que participou, da instituição da Eucaristia. Ele sublinhou muito bem, e até repetiu várias vezes, que, na Última Ceia, Jesus, tomando o cálice com vinho, o deu aos discípulos dizendo que bebessem todos do Seu Sangue, “derramado por vós e por todos para a remissão dos pecados”.
– Isso mesmo, Carlos! Cristo derramou o Seu Sangue por todos! Ninguém foi excluído do seu acto redentor. E aí está uma meditação que todos nós podemos ir fazendo quando participamos na procissão dos Passos que, pelos vistos, este ano será em Mira…
– Eu disse-lhe que era um lugar plano, para o Tio Ambrósio não sentir grande cansaço…
– Podia ser noutro lugar qualquer, onde o povo cristão se junte, para seguir espiritualmente as diversas estações da Via-Sacra. Mas estou de acordo com a vossa escolha. Só vou ali dentro vestir um agasalho, e estou inteiramente às vossas ordens.
– Vamos, Tio Ambrósio! O Sanguessuga já apitou uma série de vezes!
– Ele espera, Carlos! Até porque saber esperar é uma virtude!
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