12/04/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (26-03-2017)

– Santas tardes, Tio Ambrósio!
– Vem com Deus, Carlos! Já me tardavas, ou sou eu que ando com os horários baralhados…
– Esta coisa da mudança das horas é uma boa treta, Tio Ambrósio! Anda um homem habituado a levantar-se às seis da manhã e, de repente, começa a levantar-se às cinco, porque a geringonça do relógio biológico não entende as razões pelas quais se adiantam ou se atrasam sessenta minutos.
– Já antigamente, cá na nossa aldeia, havia dois horários: o de Verão e o de Inverno. Quem mandava na mudança era o regedor das águas da regadia, de que tu ainda te lembras bem…
– Se lembro, Tio Ambrósio! Quando eu era pequeno o regedor era o Tio Jacinto que Deus tenha em descanso, que, desde os inícios de Maio até ao final de Setembro, passava por todas as casas da aldeia a anunciar a que horas deviam começar a regar os milhos, de noite e de dia, de modo a que todos pudessem criar o renovo de que precisavam para a sua sobrevivência…
– Pois fica sabendo que esse sistema de rega comunitária vem de há mais de duzentos anos, e penso que até foi por causa de regular tudo isso que o povo encomendou um relógio que foi colocado na torre da igreja. E quem mandava nos horários era o regedor das águas.
– Mas não tinha apenas essa missão…
– Pois não, Carlos! Além de zelar para que o povo acordasse a horas e fosse regar os milhos, que eram a base do sustento de toda a população, tinha também uma função religiosa. Antes do nascer do sol tocava pela primeira vez a Trindades, e todo o povo, estivesse onde estivesse, se punha em atitude de oração e rezava as três Avé-Marias seguidas de três Glória-ao-Pai. O ritual repetia-se por volta do meio-dia solar e, à noite, uns minutos antes do pôr-do-sol…
– Lembra-me de ouvir dizer aos mais velhos que era também essa a hora de despegar do trabalho…
– Quando se podia, era! Sobretudo quando alguém andava assalariado. O trabalho, nesse caso, era de sol a sol…
– Ou seja: começava quando o regedor das águas tocava a primeira badalada das trindades, e terminava, à noite, quando se rezava a última Avé-Maria! Apesar de ser mais novo, lembro-me muito bem desses tempos, e até lhe posso dizer que tenho algumas saudades, porque então, ao contrário do que hoje acontece, todos os homens e mulheres eram tementes a Deus! Até o boticário, o senhor Alexandrino, que era o único homem que faltava à missa ao domingo, quando o relógio da torre tocava as três badaladas do meio-dia, tirava o chapéu, parava no caminho, e fazia alguns minutos de silêncio. E toda a população da aldeia registava e apreciava este comportamento de um homem que, já na altura, se dizia agnóstico, embora ninguém soubesse bem o que é que um palavrão desses queria dizer.
– Eu ainda hoje sigo esse ritual, Carlos! É verdade que o velho relógio de ferro forjado há muito que deixou de funcionar, com grande pena minha e da maioria dos homens e das mulheres do meu tempo, mas vou-me guiando pelo sinal horário da Rádio Renascença, quando estou em casa, ou pela altura do sol, quando ando por aí a limpar umas ervas ou a fazer um canteiro para semear as ervilhas…
– Até a escola se regulava pelo relógio da torre da igreja, Tio Ambrósio! Estávamos ali todos à espera, e a senhora professora, como já fazia antes o mestre-escola, só dava licença para todos entrarmos quando batiam as badaladas sonoras das oito da manhã. Depois era o sacrifício de passar o tempo até às trindades de meio-dia, que não eram sinal de que todos podíamos sair. Primeiro, todos de pé, e de mãos postas, rezávamos o “Anjo do Senhor anunciou a Maria”, e depois é que se dava o chilreio da debandada, cada um a atropelar o colega da frente, para vermos quem era o primeiro a chegar a casa, onde, na maior parte dos casos, nos esperava uma malga de caldo fumegante e, de vez em quando, um pedacito de carne da salgadeira, que a mãe ou a avó iam doseando, de modo a que o conduto chegasse para o ano inteiro…
– Antes desses tempos ainda as dificuldades eram maiores, Carlos! Mas bendito seja Deus que, nestes últimos tempos, nos tem dado possibilidades de vivermos um pouco mais desafogados, embora isto não se traduza em maior alegria ou felicidade. Eu penso mesmo que quantos mais fáceis e fartos são os tempos, mais quitada é a alegria de vivermos…
– E de convivermos, Tio Ambrósio! Porque viver é uma coisa importante; mas conviver com os nossos semelhantes é igualmente uma fonte duradoira de felicidade. Foi o Tio Ambrósio que um dia me disse que um escritor de Trás-os-Montes, que viveu quase toda a sua vida em Coimbra, escreveu no prefácio de um dos seus livros de contos que “ninguém é feliz sozinho, nem mesmo na eternidade”.
– E não deixo de lhe dar razão, Carlos! Pelo menos em parte! É verdade que alguns anacoretas, ou monges do deserto, escolheram a solidão para melhor se poderem encontrar com Deus. Mas de maneira geral, o ser humano sente-se mais realizado quando caminha a convive com os seus irmãos. Não foi por birra que Deus nos criou dentro de uma família, com pais, irmãos…
– E avós, Tio Ambrósio!
– E tios, e primos, e sobrinhos, Carlos! Aqui, no nosso mundo ocidental, vai-se perdendo cada vez mais o sentido da família alargada, onde há espaço e funções para todos. Eu fico muito triste quando vejo que os avós são colocados, a maior parte das vezes, à margem da família. Se há um casamento ou um baptizado, são chamados sobretudo se estão em condições de dar alguma prenda choruda. De outro modo, logo aparecem as desculpas de o restaurante onde é servido o almoço só ter lotação para tantos lugares, ou de não haver transporte garantido para mais que tantas pessoas…
– Pobres velhotes! E depois ainda têm o descaramento de, quando alguém diz que está velho, virem com a frase feita, e mais que gasta, que “velhos são os trapos”! Uma ova, Tio Ambrósio!
– Tem tento naquilo que dizes!
– Isto não é nenhuma asneira, Tio Ambrósio! E se fosse, eu teria a humildade para, agora em tempo quaresmal, bater com a mão no peito e pedir perdão ao Pai que está nos Céus!

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