08/04/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (05-03-2017)

– Estamos de novo na Quaresma, Tio Ambrósio!
– Desde quarta-feira passada, que eu bem te vi, a ti e à Joana, na cerimónia da bênção e imposição das cinzas. É com este acto penitencial, que recorda ao homem a sua fragilidade, que damos início à preparação para a celebração da festa central do cristianismo: a da comemoração da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo.
– Pensei que a participação fosse maior, Tio Ambrósio! É verdade que o Cabeço, como qualquer aldeia do interior, tem cada vez menos habitantes, pois só por cá ficam os mais idosos e os que, como eu, persistem em viver da agricultura, porque ainda trago nos ouvidos uma frase que vossemecê um dia me disse: “Da terra é que vem o nosso sustento”.
– E não estás arrependido em teres tomado esta opção. Que eu saiba ainda te não faltou o pão de cada dia, a ti, à tua mulher e aos teus filhos…
– Do corpo me sai, Tio Ambrósio! Mas não trocava a minha vida por uma qualquer aventura em busca de trabalho numa grande cidade ou até no estrangeiro, embora respeite e entenda muito bem aqueles que tomaram essa decisão para darem sustento aos filhos. Mas, andando por lá, penso que me faltaria qualquer coisa que só aqui consigo obter. Olhe! Por exemplo tenho dúvidas que, numa grande metrópole, ou na estranja, eu tivesse ocasião de participar na imposição das cinzas, que é um rito a que eu me habituei desde os tempos da catequese. E é isto mesmo que eu procuro transmitir aos meus filhos, na esperança que eles, amanhã, façam o mesmo em relação aos meus netos.
– Os bons hábitos transmitem-se de geração em geração…
– Já os maus, não é bem assim! Os maus hábitos são como as ervas ruins, que, por mais que a gente monde, continuam sempre a infestar as hortas e os jardins…
– Eu tenho muito cuidado com o que planto no meu quintal, Carlos! E, ao primeiro aviso da erva da grama, ou de outro qualquer infestante, caio-lhe em cima até ter a certeza que a peste foi erradicada de uma vez por todas.
– Devia ser assim nos nossos campos e na nossa vida, Tio Ambrósio! Ele há vícios e costumes maus que empestam a valer…
– Para nós, os cristãos, a Quaresma é uma boa ocasião para meter o sacho a tudo o que sufoca o nosso desenvolvimento humano, quer no aspecto social, quer familiar, quer espiritual, de tal modo que possamos desenvolver as nossas actividades equilibradamente…
– Mas não bastam as cinzas, Tio Ambrósio!
– As cinzas são um rito litúrgico em que nós participamos para interiorizarmos que somos pó…
– Por isso, o senhor Padre Feliciano, ao colocar cinza sobre a cabeça de cada um de nós, bem nos vai dizendo: “lembra-te, ó homem, que és pó e ao pó hás-de voltar”…
– Por isso esta é a ocasião mais propícia para, através da oração, do jejum e da esmola, transformarmos a nossa vida…
– É a isso que damos o nome de conversão. Não é, Tio Ambrósio?
– A conversão deve ser contínua, porque a maldade é também contínua no coração do homem. Todos somos pecadores por natureza, e todos somos constantemente chamados à graça através dos meios que Deus coloca ao nosso alcance para mudarmos para melhor a nossa vida.
– O que, digo eu que tenho experiência disso, não é nada fácil, Tio Ambrósio!
– Dizes tu e dizemos todos os que tomamos consciência da nossa fraqueza e da nossa fragilidade. Por isso é necessário que escutemos o apelo permanente ao arrependimento e à mudança de vida…
– E temos muitos meios para chegarmos aí?
– Além da confissão sacramental, ou reconciliação, Jesus, no Evangelho, aponta-nos três meios: a oração, o jejum e a esmola…
– Foi sobre isso que nos falou o senhor Padre Feliciano na Quarta-feira de Cinzas…
– E acrescentou que devemos percorrer estes caminhos de conversão o mais silenciosamente possível. Jesus lá diz, segundo o Evangelho de S. Mateus, que, quando dermos esmola ou praticarmos qualquer das catorze obras de misericórdia, não devemos ser como as pessoas fingidas, que gostam de fazer saber aos seus vizinhos que fazem este e aquele favor para receberem os louvores de quem os escuta. E Jesus lá diz que, quem assim procede, já recebeu a sua recompensa. Porque a verdadeira caridade é silenciosa. “Não saiba a tua esquerda o que dá a tua direita, para que a tua esmola fique em segredo, e Deus, que vê tudo o que está oculto, te dará a recompensa”.
– Diga-se que esse procedimento não é nada fácil, Tio Ambrósio! Nós até conhecemos muitas pessoas que, quando fazem o bem, gostam que se toquem as trombetas nas ruas, para que os seus nomes apareçam nos jornais, e todas as pessoas digam que estamos perante um benemérito da sociedade…
– Eu penso que Jesus, perante esses casos, haveria de concluir: “Já receberam a sua recompensa”. De qualquer modo, penso também que as obras sociais, mesmo quando divulgadas, têm o seu mérito, porque servem para aliviar as necessidades e os sofrimentos dos mais pobres, dos mais fracos e dos mais pequenos. Mas, aos olhos de Deus, tenho a certeza de que são muito mais meritórias aquelas que se fazem sem alardes e sem o desejo que os outros saibam que eu sou um cidadão que se preocupa com o bem dos mais infelizes.
– Ainda há quem seja assim?
– Claro que há, Carlos! Tu próprio, quando fazes um favor a alguém que precisa, não andas por aí a noticiar aos quatro ventos que ajudaste nisto ou naquilo, que destes esta ou aquela esmola…
– Nisso procuro ser muito recatado! Tanto eu como a Joana, que nesta, como em muitas outras facetas, é uma mulher exemplar. Nem a mim, que sou, por assim dizer a sua mão esquerda, ela confessa que levou cinco litros de azeite a alguém que dele precisava…
– É esse o bom caminho, Carlos! O nosso povo sempre disse que “quem dá aos pobres, empresta a Deus”!
– Seria bom que neste mundo cheio de egoísmos, e de gente que só pensa em obter cada vez mais bens materiais, surgissem muitos exemplos de mulheres e homens caritativos…
– E surgem muitos, Carlos! Graças a Deus!

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