– Entra, Carlos! É sempre uma alegria receber-te nesta minha humilde choupana. E a alegria é muito maior quando a visita constitui quase uma surpresa. Pois eu tinha percebido que hoje irias dedicar o dia inteiro à família, se calhar até com uma saída para fora…
– Tem toda a razão, Tio Ambrósio! Só que as coisas, por vezes, não correm como a gente tinha planeado. Há sempre aqueles imprevistos que, de um momento para o outro, mudam quase radicalmente o rumo dos acontecimentos.
– Só um motivo grave te levaria a não dares o teu costumado passeio com a família neste Domingo de Pascoela…
– Eu até costumo ir à Senhora da Alegria, acompanhado da Joana e dos pequenos. E, habitualmente não vamos sozinhos, pois o meu cunhado Acácio mai-la Ermelinda, o Liberato mai-la esposa, que agora é a primeira-dama do Cabeço, e o nosso antigo presidente da Junta, o Manuel Lopes, acompanhado também da respectiva consorte, vão todos em romaria. Costuma ser um domingo bem passado, com um lanche reforçado com aquelas coisas que nos fazem mal, segundo dizem os doutores, mas que sabem bem que se fartam. Por isso, hoje não contava muito ter a oportunidade sempre grata de estar consigo, para ouvir os seus avisados conselhos e para darmos um bocado à língua sobre tudo o que vai acontecendo à nossa volta.
– Então diz-me o que se passou de tão grave que te impediu essa devota peregrinação pascal à Senhora da Alegria…
– O Tio Ambrósio sabe que o homem põe e Deus dispõe. E sabe também que há coisas que não escolhem data para acontecer…
– Algum falecimento repentino, desses que agora estão na moda, que a gente nem chega a ter tempo para respirar e ver que a realidade ultrapassa sempre o nosso desejo e a nossa vontade…
– Pelo contrário, Tio Ambrósio! Foi um nascimento!
– Estás a deixar-me baralhado…
– Eu conto-lhe como tudo se passou! O nosso amigo Asdrúbal deu-lhe agora, quando os anos já começam a pesar, para investir um dinheirito na compra de duas vacas de criação. Ele tinha uns milhares de euros no banco e, quando lá foi para renovar a conta, ofereceram-lhe um juro que lhe daria penso que menos de uma dúzia de euros…
– Agora a nossa banca está assim, Carlos! Esses administradores de meia tigela que estiveram à frente das instituições de crédito, além de incompetentes, foram, em boa parte dos casos, uns malandros da pior espécie que meteram ao bolso quanto puderam, enviando contas avultadas para bancos no estrangeiro e para paraísos fiscais…
– Eles, cá no meu entender, não foram incompetentes. Foram sim larápios da pior espécie. Mas, adiante, que estamos em tempo pascal, e é melhor falarmos de coisas mais agradáveis. Como lhe dizia, o amigo Asdrúbal, depois de levantar tudo o que tinha no banco, resolveu comprar duas vacas turinas, de modo a poder tirar algum lucro das crias. E acontece que um dos animais resolveu entrar em trabalho de parto precisamente esta noite. Ele foi logo a correr para chamar o alveitar da Carrapichana, mas ele tinha ido passar estes dias da Páscoa com uma filha que tem em Lisboa. E vai daí apareceu-me de manhã, quando a Joana tinha já o farnel no cesto e os pequenos não sossegavam um minuto, a pedir-me, por amor de Deus, que fosse ajudá-lo neste trabalho, que era uma esmola grande que lhe fazia…
– E tu nem pensaste duas vezes!
– Em casos destes nunca sou capaz de dizer que não, Tio Ambrósio! Pedi à Joana que fosse com a irmã e com os pequenos que eu lá iria ter com eles logo que a turina se despachasse. Mas o caso estava complicado e vimo-nos à nora para ajudar a vaca a pôr cá fora a sua cria…
– Mas conseguiram!
– Com horas extraordinárias, Tio Ambrósio! Mas digo-lhe que é sempre uma coisa linda a gente ver um bezerro sair do ventre da mãe, a tentar levantar-se e esta, exausta, a lamber-lhe o pelo…
– E depois é preciso ensinar a cria a procurar os tetos da mãe…
– Quase sempre, Tio Ambrósio! Mas este foi tiro e queda. Mal o Asdrúbal pegou nele ao colo e o colocou junto da turina não teve qualquer problema em chegar à teta e começar a mamar, como se tivesse nascido há já meia dúzia de dias.
– Milagres da natureza, Carlos! Esse era um dos serviços em que eu colaborava com gosto, sempre na presença de um alveitar. Tivemos aqui em Chancas um muito entendido, o Sebastião das Vacas. Já não te lembras dele, pois não?
– Não, Tio Ambrósio! Mas o importante é que resolvemos o caso de modo satisfatório…
– Não foi o dia mais conveniente, mas estas coisas não se podem planear e, muitas vezes exigem que façamos horas extraordinárias…
– E sabe que o Asdrúbal ficou-me tão reconhecido que me queria pagar um dia de trabalho.
– Eu sei que tu disseste que não era nada, porque uma coisa é um trabalho planeado, outra é a ocasião que surge em que temos que desenrascar um amigo, ou mesmo um vizinho. Eu penso que quem trabalha merece o seu justo salário, e até considero uma falta grave alguém andar a servir-se do suor alheio.
– Todo o trabalho contratado merece a recompensa acordada entre as partes. Mas há quem não tenha entendido muito bem este princípio, que faz parte da Doutrina Social da Igreja…
– Do Catecismo, Carlos! Quando eu aprendi a doutrina, a minha avó, que Deus tenha em bom lugar, obrigou-me a decorar os “pecados que bradam aos céus”. E, entre eles, lá figuravam a “opressão feita aos pobres” e a falta gravíssima de se “não pagar o justo salário a quem trabalha”. Mas tu, ao referires estas coisas, não estás a querer atingir ninguém em particular, pois não?
– Por amor de Deus, Tio Ambrósio! Mas julgo que há situações em que todos devíamos pensar se estamos a ser gratos, e sobretudo justos, para com aqueles que nos prestam colaboração, que dedicam o seu tempo e o melhor do seu esforço a actividades de que todos beneficiam. Mas quem sou eu para julgar seja quem for?
– O voluntariado é sempre possível, Carlos! Ou não é?
– É, Tio Ambrósio!
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