12/04/2017

AO CALOR DA FOGUEIRA (12-03-2017)

– Há coisas na vida em que a gente não pensa, nem reflecte nelas com a atenção que elas requeriam. E uma delas é esta coisa da tentação. Na última sessão da nossa catequese de adultos, o Liberato fez-nos a proposta de dizermos todos, cada um na sua vez, o que pensávamos sobre uma coisa que ele disse que é quase tão natural como a nossa sede…
– Tão natural como a nossa sede é a nossa fome, Carlos…
– Também podia ser, Tio Ambrósio! Mas, neste caso, ele queria referir-se à tentação a que todo o ser humano está sujeito, não uma nem duas, mas muitas vezes ao dia…
– Se calhar foi por isso que Nosso Senhor, quando nos ensinou o Pai Nosso, incluiu nessa oração o pedido a Deus para que nos não deixe cair em tentação…
– E nos livre do mal, Tio Ambrósio! Nós repetimos tantas vezes esta oração, e raramente nos detemos a meditar no que é que ela significa profundamente para cada um de nós. Como diz o meu cunhado Acácio, passamos por estas palavras da oração que Jesus nos ensinou como cão por vinha vindimada…
– Por estas e por muitas outras, Carlos! A maior parte das vezes quase parecemos uma máquina de repetição, ou um disco que diz sempre o mesmo, sem aprofundar o sentido das palavras que profere.
– E a verdade é que, como nos alertou o Liberato na sua última lição de catequese, isto da tentação é um facto que atravessa toda a nossa vida, todos os dias e das mais variadas formas. O nosso catequista de serviço começou por nos alertar para o fenómeno da longa história da tentação. Afinal o problema é tão velho como o próprio homem. Logo no princípio, a serpente, que simboliza o tentador, seduziu (porque a tentação é sempre uma sedução) a mulher, e esta o homem… e ambos se deixaram levar no engano, só depois reconhecendo que não tinham procedido como deviam e como lhe indicava a sua consciência.
– É o que se passa com todos nós, Carlos! Novos e velhos, jovens e crianças, ninguém está isento de sentir os apelos da tentação. E até te posso dizer que não existe apenas um tentador…
– O Liberato lembrou que, na velha cartilha, que agora nem sempre é tida em conta, se dizia que o homem pode ser tentado pelo menos por três grandes espécies de inimigos: o mundo, o demónio e a carne, ou seja a nossa natureza inclinada a deixar-se ir na onda do mais fácil e do que nos dá maior prazer em cada momento que passa…
– E não se trata de uma coisa passageira, que agora nos entrou pela porta e logo a escorraçamos pela janela, de modo a que nunca mais entre…
– Não, Tio Ambrósio! A tentação é chata como uma carraça! Não nos larga de modo nenhum! E quando a gente pensa que se viu livre dela, logo nos aparece uns metros à frente, no nosso caminho, vestida de modo diferente, de maneira a que pensemos que já não é a mesma. Disse-nos o Liberato, na sua reflexão, que o Tentador tem uma imaginação levada da breca. Se a gente não escorrega na primeira, logo ele inventa outra forma de nos fazer cair na esparrela. E volta à carga quantas vezes forem precisas, sempre com argumentos mais requintados.
– É persistente, Carlos! Nisso dá-nos uma boa lição, de modo a não descansarmos nem à primeira, nem à segunda. Ele, o Tentador, não é tão ingénuo como nós, que pensamos que nos basta rezar uma vez, praticar o bem numa só ocasião, dizer a verdade um dia apenas…
– E disfarça-se, Tio Ambrósio!
– Se disfarça, Carlos! Veste-se de mil e uma maneiras, encarnando os mais diversos personagens. É um actor versátil! Umas vezes surge-nos no papel de comerciante, tentando seduzir-nos com novos produtos, que nos trazem sempre a felicidade garantida…
– E quando vamos a ver, caímos que nem patinhos!
– Claro! Para que é que o Tentador tirou o curso de mestre da sedução? Por isso, ele pode aparecer na nossa vida vestido por exemplo de catedrático…
– Acredito que sim. Mas para quê, Tio Ambrósio?
– Para se fazer passar por uma pessoa muito inteligente e muito sábia, com opiniões que nós devemos seguir sem nos questionarmos sobre a matéria que nos é proposta. Queres um exemplo?
– Agradecia, Tio Ambrósio! É que por vezes eu não entendo bem as coisas, nem que me façam um desenho…
– Tens agora aí a discussão, a que já aqui nos referimos, sobre a legalização da pena de morte assistida, ou seja da eutanásia. O Tentador arrebanhou aí uns tantos, alguns dos quais até foram baptizados e se declaram cristãos, que querem fazer ver ao povo o contrário do que está inscrito na sua consciência. E usarão de todos os argumentos possíveis e imaginários, como um intelectual de esquerda que o meu afilhado Jacinto aqui me trouxe um dia e que, vindo o assunto à baila, me quis passar um atestado de ignorância, pois alguns dos crânios mais famosos do planeta, desde um investigador na Universidade da Pensilvânia, até a um renomado médico de Copenhaga, passando por diversos catedráticos de Oxford, de Paris e de todo o mundo civilizado são defensores da legalização da pena de morte assistida…
– E o Tio Ambrósio engoliu em seco…
– Achas, Carlos? Há assuntos sobre os quais, por mais morfina que me botem no chá, ninguém é capaz de me calar. E este da inviolabilidade da vida é um deles, talvez mesmo o primeiro de todos. Por isso, com toda a calma que me foi possível encontrar, mas com a voz firme que tu me conheces quando se trata de falar de assuntos muito sérios, eu declarei-lhe: “pois pode o senhor doutor trazer-me aqui todos esses cientistas e esses ilustres catedráticos, e juntar-lhes outros tantos, mais o dobro de outros tantos, e mais uns milhares deles vindos dos quatro cantos do mundo, acumulando toda a sua sabedoria adquirida nos seus altos estudos, que eu lhe garanto, à fé de quem sou, que tudo o que sabem não vale nem a milionésima parte de uma só Palavra saída da boca de Deus”.
– E calou-o, Tio Ambrósio?
– Certamente ele haveria de voltar à carga noutro lado, como fazem todos os que estão ao serviço do Tentador. Mas eu, não apenas como cristão, mas como ser humano que tem consciência daquilo que é, não recuei nem um milímetro.
– E Deus o conserve assim por todos os dias da sua vida!

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