– Até pensei que o Tio Ambrósio não estava em casa. Mas ainda bem que o vejo chegar e, ao que parece de perfeita saúde!
– Depois do repasto saí um bocadito para esticar as pernas, porque todos os médicos recomendam, sobretudo aos adultos seniores, que, para manutenção e equilíbrio da saúde, se deve fazer uma pequena caminhada diária ou, pelo menos, dia-sim dia-não. Quando marco encontro com o senhor doutor Secundino, o que ele me recomenda sempre, para além de não sei quantos comprimidos, é beber muita água e caminhar o bastante. E eu costumo ser mais ou menos cumpridor dos conselhos dos clínicos…
– Quando o tempo estiver de feição, se vossemecê quiser, até podemos combinar umas caminhadas, aproveitando para, pelo caminho, botarmos a conversa em dia. Em vez de estarmos aqui parados, fazemos as duas coisas ao mesmo tempo…
– Tu quase sempre apresentas sugestões acertadas. Mas, agora que estamos a chegar à quadra do Natal, possivelmente não é a época mais apropriada. Deixamos isso para depois da Senhora das Candeias, que os dias já estão a crescer, e pode acontecer que tenhamos aí umas tardes a cheirar a Primavera…
– Estou sempre à sua disposição, Tio Ambrósio!
– E agora que me contas da vida aí pelo nosso Cabeço?
– Olhe, Tio Ambrósio! Tanto eu como o Sanguessuga e o meu cunhado Acácio estamos bem contentes com a safra da azeitona. É verdade que muitos olivais foram pasto das chamas. Mas os que ficaram aqui mais perto do povo, produziram a bem dizer por eles e pelos que arderam. Eu nem sei se o Tio Ambrósio tem colheita que lhe dê para todo o ano…
– Tenho, Carlos! Este ano tive bastante, e as azeitonas até fundiram mais do que eu estava à espera, por causa da seca. Dá-nos Deus mais do que nós merecemos!
– É verdade! E as coisas vão-se restabelecendo aos poucos! Esta chuvita, embora pouca, já deu para que nos lameiros nasçam ervas, e eu penso que, lá mais para diante, vamos voltar a ver as nossas encostas revestidas de carquejas e de urzes…
– Este ano ainda não, Carlos! A natureza é pródiga em surpresas, mas, desta vez, a destruição foi muito grande, deixando marcas profundas que, mesmo que as coisas corram pelo melhor, vão demorar vários anos a desaparecer. Há feridas que deixam cicatrizes que só se curam com o tempo. Tu talvez faças uma ideia aproximada de quantas colmeias arderam só no concelho da Pampilhosa da Serra…
– Eu não me dedico à apicultura, Tio Ambrósio! Já me chega o trabalho que tenho para criar os bezerros. Mas ouvi dizer ao Quintino que, só a um compadre dele da freguesia de Fajão, arderam perto de duzentos enxames, o que lhe vem comprometer a venda do mel e da respectiva aguardente, que é uma das especialidades daquela região.
– E tudo isso vem contribuir para a desertificação daquelas terras, Carlos! A vida até aqui já não era nada fácil, pois as reformas são muito pequenas, sendo supridas por alguns centos de euros auferidos destas culturas, quer do mel, quer do medronho, quer da venda de algumas árvores.
– Ou mesmo até do leite e do queijo produzido a partir do pastoreio dos poucos rebanhos que ainda existiam. Mesmo que os pastos se refaçam, um rebanho de ovelhas ou de cabras demora bastante tempo a restabelecer-se. A não ser que se vão adquirir animais a outros lugares do país…
– São muitas dificuldades juntas, a acrescentar à mais significativa de todas, que é a do envelhecimento da população do interior do país. Já aqui temos conversado várias vezes sobre a falta de gente nova. As escolas fecharam. E essas actividades que referimos são exercidas por gente já bastante avançada nos anos que, olhando à sua volta, não sei se está disposta a recomeçar praticamente do nada.
– Nós, os beirões, somos de rija têmpera, Tio Ambrósio! Mas acredito que esta circunstância sirva para alguns abandonarem as suas aldeias, deixando-as totalmente desertas. Espero bem que não…
– Pelo menos aparentemente, as autoridades do país estão dispostas a fazer com que a vida desta larga região retome o seu ritmo normal…
– A ver vamos, Tio Ambrósio! Os problemas alheios depressa esquecem a quem os não sente na pele! E atrás destes, outros vêm, como é agora o caso das muitas e variadas greves que, aos poucos, vão paralisando o país…
– Parece que não estás muito de acordo com as reivindicações dos trabalhadores, nomeadamente os ligados à função pública.
– Todos temos o direito de manifestar a nossa opinião, Tio Ambrósio! Só que a voz de alguns não é ouvida por ninguém, ao passo que a de muitos outros é ampliada pelos meios de comunicação social.
– E pelas greves, Carlos! O Sanguessuga contou-me há poucos dias que, tendo uma consulta marcada em Coimbra, para ele ou para a mulher, ficou que nem uma barata ao chegar ao respectivo local e receber a informação que, por falta de um funcionário, a senhora doutora não atenderia ninguém, adiando o acto clínico para o dia 23 de Fevereiro do ano que vem, que, por acaso até calha a uma sexta-feira, que é o dia mais propício para serem marcadas novas greves…
– Podia ser pior! Mas convenhamos que a saúde das pessoas não é propriamente um assunto com que se possa brincar…
– Brincar? Vai lá dizer essa aos sindicalistas, que ainda és corrido com uma manifestação de insultos! “A brincar – dizem eles – andam os governos há muito tempo com os trabalhadores”.
– E alguns têm razão, porque o sol quando nasce é para todos, Tio Ambrósio! Se a alguns é reconhecido o direito de progredirem nas suas carreiras, parece-me justo que os que ficaram para trás reclamem…
– Eu concordo com os princípios da justiça decorrente da igualdade, Carlos! Só que me parece que o bolo disponível é capaz de não ser suficiente para todos saciarem a sua fome. E o que acontece é que quem mais berra mais mama, não se interessando com os que não conseguem nem sequer obter umas pequenas migalhas que caem quando se sacode a toalha da mesa das conversações.
– E daí surgem novas lutas, cada classe procurando falar mais alto que as outras, de tal forma que se chega a uma barulheira tal que ninguém se entende…
– Sábio é o povo que, desde há muito, diz que “em casa onde não há pão, todos ralham e (se calhar) todos têm razão”!
– Será, Tio Ambrósio?